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Crítica | Juvenília, Fragmentos e Poemas, de H.P. Lovecraft

por Luiz Santiago
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Howard Phillips Lovecraft, nasceu na cidade de Providence (Rhode Island, EUA) em 20 de agosto de 1890, e faleceu no mesmo lugar, em 15 de março de 1937. Criador de uma linguagem muito particular do terror em suas obras, o COSMICISMO ou HORROR CÓSMICO, Lovecraft fez de suas fantasias, ficções científicas e ficções sobrenaturais um verdadeiro marco na literatura, não só dos Estados Unidos, mas no mundo. Infelizmente, o autor não conheceu o sucesso em vida, mas seus textos de olhar majoritariamente pessimista para o Universo e para os seres que nele habitam (os humanos eram absolutamente insignificantes no meio de tanta “grandeza maior e oculta”) sobreviveram e conseguiram alcançar público e fama com o passar dos anos.

Lovecraft foi um autor tremendamente prolífico. Ele começou a escrever ainda na infância, mas seus trabalhos hoje celebrados fazem parte da “carreira literária madura”, que começou em 1917, quando escreveu o conto Dagon (publicado apenas em 1922). Ele nunca chegou a escrever um romance, no sentido mais estrito do termo. Sua obra de ficção é composta essencialmente de contos e novelas, com diferentes estilos de abordagem. Em sua bibliografia também é possível encontrar centenas de poemas, colaborações com outros escritores, revisões, trabalhos de ghost writing, cartas, artigos filosóficos, artigos científicos e artigos literários. No presente compilado, trago as críticas para os  contos escritos na primeira fase literária do autor (infância, adolescência e começo da juventude), entre c. 1897 até 1908; para alguns poemas de horror e fantasia; e para fragmentos de obras não finalizadas, produzidas entre 1922 e 1933. A arte utilizada na capa é de Loneanimator.

  •  Devido o tipo de obras aqui analisadas, preferi não utilizar nenhuma classificação em estrelas.

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JUVENÍLIA

c. 1897 a 1908

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A Pequena Garrafa de Vidro

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1º de Janeiro de 1864
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Sou John Jones. Enquanto escrevo esta carta meu navio está afundando rapidamente com um tesouro a bordo. Estou no ponto * marcado no mapa anexo […] As linhas pontilhadas representam nosso curso.

Plano Crítico A Pequena Garrafa de Vidro Lovecraft

Vamos pensar por um momento nisso: quando começou a escrever este pequeno conto, Lovecraft tinha de sete anos de idade, tendo inicialmente abandonado a história e depois voltado para acrescentar um final cômico e cínico para algo que claramente foi pensado como uma expedição épica, infelizmente não levado adiante. Na trama, o Capitão William Jones está em um pequeno barco, quando encontra uma garrafa de rum no mar, com um misterioso escrito, indicando um tesouro perdido. O leitor fica curioso, assim como a tripulação que encontra a garrafa, mas o conto vai por um caminho surpreendentemente cômico, com uma peça pregada por alguém, querendo fazer marinheiros buscarem riquezas inexistente no mar. Uma história curta, interessante e com a cara de uma criança muito criativa, já mostrando o amor que Lovecraft pelo ambiente marítimo, que faria parte de muitas de suas histórias maduras, décadas depois.

A Pequena Garrafa de Vidro (The Little Glass Bottle) — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: c. de 1897 a 1899 e 1959
Autor: H. P. Lovecraft
4 páginas

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A Caverna Secreta ou A Aventura de John Lee

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Quando deu por si, já se encontrava na superfície, agarrando fortemente o corpo da irmã e a caixa misteriosa.

Escrito quando Lovecraft tinha entre oito e nove anos, esta história já mostra o tom depressivo, lúgubre e muito inventivo do garoto, novamente mostrando uma história de dissabores que envolve dinheiro — embora, diferente de A Pequena Garrafa de Vidro, existe aqui algo que nenhuma quantia pode pagar, pensamento que o pequeno escritor expõe no final da história. Trata-se de uma aventura claustrofóbica e cheia de resoluções ex machina e ações exageradas de dois irmãos que entram em uma caverna e passam por maus bocados. Há quase uma lição de moral aqui, embora isso não seja firmado no conto. O trauma, ao fim, encontra um tipo de compensação externa, temporária até, mas existe uma promessa muda de que algo jamais será esquecido pela família Lee.

A Caverna Secreta ou A Aventura de John Lee (The Secret Cave, or John Lee’s Adventure) — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: c. 1898 – 1899 e 1959
Autor: H. P. Lovecraft
2 páginas

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O Mistério do Cemitério ou “A Vingança de um Homem Morto”

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Pouco depois, o grupo começou a ficar impaciente, e passado um tempo o Sr. C. Green (o Advogado) desceu para investigar. Depressa voltou para cima com uma cara assustada e disse, “O Sr. Dobson não está lá!”.

Um mini-épico, dividido em doze partes, este conto policial e com uma pitadinha de fantasia e mistério tumular foi escrito por Lovecraft entre os oito e nove anos de idade. A história está dividida nas seguintes partes: O Túmulo de Burns, O Misterioso Sr. Bell, Na Esquadra da Polícia, A Janela Oeste, O Segredo do Túmulo, A Perseguição a Bell, O Negro Condutor de Cavalos, A Surpresa de Bell, O Julgamento, A História de Dobson, O Mistério Revelado e Conclusão. Em cada uma delas temos a troca do espaço narrativo, focando em uma ação ágil onde as pessoas lidam com um sequestro. O plano tem um quê de engenhoso, mas a narrativa, por falta de experiência do jovem escritor, é cansativa, apesar de nos intrigar aqui e ali e nos deixar curiosos, especialmente no início e na revelação sobre qual é o “segredo do túmulo“. No momento em que a revelação vem, porém, o leitor não se importa mais com o Deus ex machina, pois o ponto principal e realista da investigação já tinha sido bem destacado e, para pequenas doze partes de conto de um escritor de nove anos, até que não está mal.

O Mistério do Cemitério ou “A Vingança de um Homem Morto” (The Mystery of the Grave-Yard or “A Dead Man’s Revenge”) — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: c. 1898 – 1899 e 1959
Autor: H. P. Lovecraft
5 páginas

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O Navio Misterioso

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Na Primavera de 1847, a pequena aldeia de Ruralville foi atirada para um estado de agitação pela chegada ao porto de um estranho veleiro de dois mastros. Não tinha bandeira e tudo nele suscitava suspeição. Não tinha nome. O nome do seu capitão era Manuel Ruello. No entanto, a excitação aumentou quando John Griggs desapareceu de sua casa, a 4 de Outubro. A 5 de Outubro, o veleiro já desaparecera.

Dos contos da juvenília de Lovecraft, este parece o mais problemático. Escrito quando ele tinha doze anos, a obra talvez padeça da ambição do jovem escritor em tratar um caso de desaparecimentos misteriosos logo após um certo navio (o que é marcado desde o título) aportar em alguns lugares e, rapidamente, partir, deixando muita gente confusa e tentativas governamentais de capturá-lo. Não há muita coisa que nos chame a atenção aqui. A curiosidade é mais para ver que tipo de resolução se dará depois da introdução — o conto tem nove pequenas partes –, mas já na parte dois a coisa começa a ficar relativamente chateante, sensação aumentada quando o pequeno Lovecraft tenta dar uma explicação “lógica” para o que de fato está acontecendo. Mesmo assim, a iniciativa é admirável. Esse tipo de mistério ganharia um patamar cósmico e não realista e/ou científico em sua ficção madura.

O Navio Misterioso (The Mysterious Ship) — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: 1902 e 1959
Autor: H. P. Lovecraft
3 páginas

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A Fera na Caverna

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A conclusão apavorante que viera, gradualmente, a apoderar-se da minha mente confusa e relutante, era agora uma certeza horrível. Estava perdido, completa e irremediavelmente perdido, nas vastas e labirínticas reentrâncias da Caverna do Mamute.

Escrito quando Lovecraft tinha entre 15 e 16 anos de idade, A Criatura da Caverna é o que podemos chamar de verdadeira primeira tentativa de horror do jovem escritor (ao menos considerando os textos existentes de sua juvenília), narrado em primeira pessoa por um turista que, em uma visita a uma grande caverna, se desloca do grupo para as regiões proibidas… e se perde. Existe aqui um genuíno horror no ar, na forma como o texto é construído, primeiro apresentando reflexões pessoais do homem perdido, imaginando como seria a sua morte; depois, a reativada esperança e o senso de autoproteção e, por fim, a perseguição da criatura da caverna. Diferente dos contos anteriores, não há facilidades exageradas ou bobagens na estrutura. O único momento “impossível” do texto é esclarecido na reta final, quando a verdade sobre a criatura nos é revelada e entendemos que o ato inicialmente “forçado” do turista perdido era, sim, perfeitamente possível naquelas condições. Uma história que demonstra a capacidade de Lovecraft desde cedo em colocar seus personagens em situações extremas e delas tirar o máximo de temores e surpresas possíveis, inclusive, flertando com o fantástico, mesmo que em segundo plano.

A Criatura na Caverna (The Beast in the Cave) — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: 1905 – 1906 e 1918
Autor: H. P. Lovecraft
6 páginas

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O Alquimista

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Que nobre algum da tua estirpe matadora,

Idade venha a ter mais do que tens agora.

Finalizando a série de produções de sua juvenília, Lovecraft escreveu O Alquimista, aos 18 anos de idade, já com todos os ingredientes que marcariam suas produções maduras — um broto daquilo manifestado pela primeira vez em A Criatura na Caverna. O único inimigo deste conto é a escolha didática do autor em revelar, com todas as letras, a identidade de um importante personagem da história, quando já havia ficado claro, desde o começo, quem ele era. A despeito disso, a produção é intrigante, cheia de boas descrições do espaço de um castelo, de surpresas guardadas nas salas escuras e da misteriosa maldição que acompanha uma importante família, por séculos. Na primeira parte, imaginamos que uma manifestação de outra ordem está para aparecer, mas a colocação da magia ou alquimia na trama funciona bem em sua interação mais básica com o mundo secular, da Idade Média à idade Contemporânea. Não fosse a insistência em explicar quem movia a maldição, teríamos aqui um encerramento brilhante da fase inicial da carreira de Lovecraft. Mesmo que isso não seja possível, não dá para desprezar O Alquimista de maneira alguma. A narrativa é muito bem feita para que a larguemos “apenas” por um final mal ajambrado.

O Alquimista (The Alchemist) — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: 1908 e novembro de 1916
Autor: H. P. Lovecraft
8 páginas

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FRAGMENTOS

1922 a 1933

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Azathoth

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[…] quando estas coisas passaram, e as esperanças infantis foram embora para sempre, existiu um homem que viajou para fora da vida numa jornada por espaços onde os sonhos do mundo haviam fugido.

Azathoth_the_blind_idiot_god Plano Crítico Azathot Lovecraft

Ele é o Deus Cego Idiota, O Caos Nuclear, o Sultão Demoníaco, o Idiota Abissal. Neste fragmento de uma novela inacabada de Lovecraft, porém, ele ganha apenas o título; nem sequer aparece. Mas uma minúscula fração de sua presença é rapidamente sentida por um homem, em uma Terra aparentemente futurista, dominada pela ciência, pela razão e, até onde se pode perceber, pela esterilização do pensamento mitológico e artístico; um mundo cinza onde as pessoas vivem mecanicamente, envoltas em trabalho e rotina massacrantes. Em apenas cinco páginas, o autor faz com que este homem se aproxime de nós. Ele é um sonhador. Um dos raros, nesse mundo. Ele “chama” as estrelas, observando-as pendurado no parapeito de sua janela, para ver além dos altos muros e das outras janelas que existem em frente à sua. E é em uma dessas “chamadas” que ele se vê envolvido em uma experiência descrita de maneira lírica e cósmica pelo autor, dando ideia de textura, volume, perfumes, sensações táteis e outros sentidos possíveis que se vêm em torno do sonhador, por ciclos não medidos em nosso calendário (certamente sob o ponto de vista dele).

Os detalhes para quem é Azathoth seriam dados em outras histórias do Ciclo, seja na obra de Lovecraft ou de outros autores, e trata-se certamente de uma mitologia encantadora. Um Deus Primordial e Exterior Absoluto, ao qual a morte não se aplica, que a tudo criou, cria e criará e que tudo sabe (de todos os tempos), embora durma e tenha a “mente vazia” ou seja, ele é a Neutralidade Absoluta. Ele é muito mais do que a junção absoluta de todos os Deuses, ele é a criação indiferente a tudo, pois sua imensidão o coloca fora de qualquer tipo de julgamento, fazendo-o não ter noção do quanto é poderoso, inclusive comparado aos mais poderosos Deuses do Cosmos. Azathoth, porém, é mais que eles, e para interpretar suas vontades, a fim de que o Universo mantenha algum tipo de equilíbrio, existe seu avatar-mensageiro, ninguém menos que Nyarlathotep, o Caos Rastejante.

Azathoth: Hideous Name — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: junho de 1922 e junho de 1938
Publicação original: Leaves
No Brasil: A Tumba e Outras Histórias (L&PM Pocket)
Autor: H. P. Lovecraft
Tradutor: Jorge Ritter
5 páginas

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O Descendente

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Em Londres existe um homem que grita quando os sinos das igrejas tocam. Ele vive totalmente só com um gato malhado na Pensão Gray, e as pessoas o chamam de “louco inofensivo”.

plano critico o descendente lovecraft necronomicon

É absolutamente lamentável que Lovecraft não tenha terminado essa história. Nela, temos em destaque o amedrontado Lord Northam, que não parece tão velho quanto sua aparência denuncia e que a tudo teme. Em sua casa há um amontoado de livros “pueris e alegres” que servem como distração para o personagem. Evitar pensar é a única saída que ele encontra para seus tormentos. Isso até que ele se encontra com um vizinho de 23 anos, Williams, um “sonhador” que amava o bizarro desde que tinha 16 anos. Ao longo do pequeno texto, vemos aparecer em cena nada menos que uma cópia do Necronomicon — vendida de forma suspeita para Williams — e sugestões que ligam a outras histórias do autor como A Chave de Prata e A Cidade Sem Nome.

Como não existem detalhes sobre o que acontece com os personagens, qual o sentido do livro e como eles se ligam a algum ciclo ou parte de mistérios do autor, resta-nos apreciar as primeiras sementes de uma história que cita uma descendência bastante antiga para Lord Northam (cabendo até a presença de Lunaeus Gabinius Capito, que fizera parte da mesma unidade romana citada em Os Ratos nas Paredes) e que sugere um nível de perturbação grandiosa de um personagem, a se encontrar com uma sede de conhecimento pelo oculto, de outro. Entendemos (até onde isso é possível), a ideia de uma maldição através da linhagem do protagonista — lembremos que o autor sempre gostou desse tipo de tema, trabalhando já em sua juvenília, no conto O Alquimista –, mas não existe uma razão de ser para nada nessas primeiras páginas, apenas uma sugestão para algo que já desperta a curiosidade. Uma pena que seja apenas um fragmento.

O Descendente (The Descendant) — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: início de 1927 e março de 1938
Publicação original: Leaves
No Brasil: A Tumba e Outras Histórias (L&PM Pocket)
Autor: H. P. Lovecraft
Tradutor: Jorge Ritter
16 páginas

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A Coisa no Luar

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Meu nome é Howard Phillips. Vivo na Rua College, 66, em Providence, Rhode Island. A 24 de novembro de 1927 — pois não sei sequer em que ano estamos agora — adormeci e sonhei, e desde então tem sido incapaz de despertar.

plano critico a coisa no luar lovecraft

Durante muito tempo, não se soube que A Coisa no Luar não fosse um conto de H. P. Lovecraft. Alguns classificam até como uma parceria, mas não creio que se enquadra nessa nomenclatura também. O mais correto é considerar mesmo como um fragmento de Lovecraft, trabalhado por outro autor, no caso, J. Chapman Miske. S.T. Joshi, um dos estudiosos notáveis de Lovecraft e sua obra, foram um dos que mais defenderam o caráter apócrifo desta história, e ele estava certo. O caso é que em 24 de novembro de 1927,  Lovecraft escreveu uma carta para o amigo e também escritor Donald Wandrei, onde lhe contava um estranho e perturbador sonho. Miske, que era editor, preencheu os espaços da narrativa onírica em formato de prosa corrida, obedecendo o estilo de Lovecraft até onde pode, e publicou a obra na Bizarre Magazine, em janeiro de 1941.

O sonho em questão é absolutamente tenebroso. Aliás, a situação em si é medonha. Um homem chamado Morgan, analfabeto e com uma paupérrima oralidade em inglês, é certa vez — enquanto estava sozinho — tomado de um ímpeto incompreensível e começa a escrever um relato em nome de um indivíduo chamado Howard Phillips (sim, o “H.P.” de Lovecraft), que diz estar literalmente preso em um sonho onde é perseguido por dois funcionários da empresa de bondes, com trilhos em um platô à beira de um charco. Os detalhes, como em um grande número de obras de Lovecraft (bem, nesse caso, não dele exatamente), são um pouco confusos, especialmente na chegada do narrador ao lugar onde ele encontraria as duas criaturas, um com um grande tentáculo vermelho no lugar do rosto e outro com uma cara horrenda de lobo — ou algo mais ou menos parecido –, sempre uivando para a Lua e sempre perseguindo o pobre sonhador.

De maneira muito similar a O Livro, essa história poderia se passar por um conto curto. Ela não tem a cara de fragmento, embora todo o desenvolvimento possível para o personagem e para a situação em que ele se encontra não sejam dados nas páginas, o que não é um problema. Dos fragmentos deixados pelo autor, esse, apesar das polêmicas sobre ser uma história apócrifa, é um dos mais bem amarrados. E um daqueles que nos faz ter medo de sonhar.

A Coisa no Luar (The Thing in the Moonlight) — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: novembro de 1927 e janeiro de 1941
Publicação original: Bizarre Magazine
No Brasil: A Tumba e Outras Histórias (L&PM Pocket)
Autor: J. Chapman Miske (baseado em uma carta de H. P. Lovecraft)
Tradutor: Jorge Ritter
5 páginas

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O Livro

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Veio enquanto eu declamava em voz alta o nono verso do primeiro canto, e eu soube em meio ao meu estremecimento o que significava. Pois aquele que atravessa o portal sempre ganha uma sombra, e nunca novamente pode ele ficar só. Eu tinha evocado – e o livro era, de fato, tudo o que eu suspeitei. Naquela noite eu atravessei o portal até um vórtice de tempo e fantasia entrelaçados, e, quando a manhã me encontrou no sótão, eu vi nas paredes e nas estantes e nos objetos algo que eu jamais vira antes.

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Último dos fragmentos de H. P. Lovecraft, O Livro faz parte de um momento da carreira do escritor em que ele não andava muito contente com o que produzia, tentando mudar progressivamente o seu estilo de escrita ou pelo menos de abordagem para os temais que mais gostava de escrever, ou seja, as muitas formas de manifestação das forças dos Mundos Exteriores. Diferente das produções anteriores (à exceção de A Coisa no Luar), existe aqui um senso muito maior de completude, dando a impressão de ser o fragmento deixado mais perto da conclusão, ao menos se considerarmos que a intenção era um conto curto sobre um homem que tem contato com um misterioso livro e começa a utilizar as magias ali ensinadas para visitar outras esferas da existência, nas muitas realidades possíveis. Em H. P. Lovecraft Encyclopedia (S. T. Joshi e David E. Schultz, 2004) há a sugestão de que O Livro foi uma tentativa de Lovecraft em transformar os três primeiros sonetos de Os Fungos de Yuggoth em prosa, ampliando os detalhes ali apresentados. Em 1980, na antologia New Tales of the Cthulhu Mythos, o escritor Martin S. Warnes usaria este mesmo fragmento para construir a narrativa de O Livro Negro de Alsophocus, visão do autor sobre o que teria sido essa história de Lovecraft.

Exceto pelo primeiro momento um pouco confuso, quando falamos do protagonista e narrador tendo contato com o livro, todo o restante do fragmento funciona muitíssimo bem como uma descoberta para algo sublime, “fora da realidade”. Mesmo que o narrador deixe claro que sua noção de tempo e percepção da existência não está dentro daquilo que podemos considerar “sã”, também fica claro o fato de que ele realmente viveu o que está narrando, embora não tenhamos detalhes de como essa viagem por outras dimensões termine ou o que isso causará a ele. Curioso é que, diferente de muitos alucinados e perdidos personagens de Lovecraft, o protagonista aqui tem medo de se perder para sempre no Mundo Exterior, “finalizando” a experiência com um aviso de que tomaria mais cuidado com seus futuros experimentos de magia. Esta sim é a postura de alguém muito curioso e corajoso que, mesmo continuando a mexer com o que não devia, não se entrega loucamente a algo que pode despedaçá-lo ou fazê-lo se perder nas muitas montanhas da loucura…

O Livro (The Book) — Estados Unidos
Datas de escrita e publicação originais: outubro de 1933 e março de 1938
Publicação original: Leaves
No Brasil: A Tumba e Outras Histórias (L&PM Pocket)
Autor: H. P. Lovecraft
Tradutor: Jorge Ritter
5 páginas

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POEMAS DE FANTASIA E HORROR

1915 – 1930

É muito importante destacar que aqui não estão todos os poemas de Lovecraft. Seria impossível fazer um compilado de todos eles em uma única postagem, afinal, são mais de 500 produções, contando as poesias da juvenília do autor até pelo menos a sua última produção datada, nesse gênero, em de dezembro de 1936, três meses antes de sua morte! E olhem que há quase uma unanimidade em relação à poesia lovecraftiana ser o ponto mais fraco da carreira do autor, estando, inclusive, abaixo das cartas que ele escrevia! De todo modo, é visível que Lovecraft se esforçava e, mesmo que não fosse um bom poeta, tinha uma capacidade maravilhosa de criar imagens e atmosferas poéticas medonhas e de qualidade, dando à sua poesia um sólido status de complemento distanciado aos contos. Aqui, aglutinei algumas produções que se enquadram no gênero fantasia ou horror, seguindo a divisão feita pela curadoria de S. T. Joshi em The Ancient Track: The Complete Poetical Works of H. P. Lovecraft, lançado em 20 de agosto de 2013.

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Nêmesis (Nemesis, 1º de novembro de 1917). Um inimigo da Criação? Que pecado a criatura deste poema poderia ter cometido? Quem é este alguém que quando os faraós surgiram, já era um ser quase impossivelmente velho? Pelo que diz no poema, trata-se de um ser que esteve na Terra desde os seus primórdios, mas cujo pecado — que supostamente foi cometido aos poucos — fez com que tivesse uma punição em uma dimensão onírica, ao mesmo tempo fora e dentro de nossa realidade. Este poema é o seu canto, o seu lamento. A sua busca desesperançada por entendimento e perdão.

Astrophobos (25 de novembro de 1917). Poema muito parecido com Revelação, mas aqui de alguém que tem o olhar para fora da Terra, imaginando como seriam os Mundos Exteriores, as vidas felizes, as auras, toda uma existência superior à nossa. É quando a visão dos astros muda para este indivíduo. E o que antes era uma estrela que lhe inspirava, agora lhe trazia caos e desespero. A impressão que temos é o surgimento repentino de um cenário do tipo O Grito, de Munch, com um verdadeiro terror se apossando de alguém em um cenário normal e, neste caso, simplesmente imaginativo. Ou era assim que o eu-lírico pensava…

Desespero (Despair, c.19 de fevereiro de 1919). O que nos reserva o futuro? Basicamente é em torno dessa pergunta de Lovecraft escreve este poema, mostrando um ambiente, em um determinado momento da vida (os tempos se fundem, mas o passado parece ser o “espaço seguro” nesta realidade), onde alguém vê todas as criaturas, pragas, pestes e animais macabros ganharem significados mortais e em ataque, como se eles representassem um momento muito ruim na vida de alguém ou uma série de dissabores que trouxeram a morte, levando o indivíduo desesperado de volta para o lugar onde a paz existe. O esquecimento. É um pouco cruel, mas é, a meu ver, uma mensagem de esperança, no final das contas. Ah, a propósito, Dis, a “Cidade Invisível” é citada aqui.

Revelação (Revelation, março de 1919). Este poema começa de maneira tão bonita, com um eu-lírico admirando a beleza do campo, o verde, o céu, que jamais imaginamos a virada de perspectiva que ele terá no final do poema, sendo visto por algo e, a partir dessa percepção, notando coisas que jamais imaginava que ali existissem. É um poema sobre o descortinar da realidade diante da maior eventualidade possível para alguém.

Os Gatos (The Cats, 15 de fevereiro de 1925). Absolutamente fantástica essa visão de felinos caminhando por cenários desertos, viciados, apodrecidos. Os gatos são animais muito curiosos — e aqui vou deixar de lado a fofura dos pets e falar do animal como símbolo e base de instintos mesmo. A simbologia para os gatos é imensa e às vezes extremas, alternando-se, dependendo da interpretação, entre tendências benéficas e maléficas. Ambas as visões simbólicas estão corretas, porque os gatos são animais ao mesmo tempo mensageiros de ternura e de dissimulação. A descrição que Lovecraft faz deste ambiente e de como os gatos se encaixam nele é muito, muito interessante. Um lugar que até a cat person mais fanática do Universo, recusaria visitar.

O Caminho Antigo (The Ancient Track, 26 de novembro de 1929). Bem… parece que se você está a duas milhas de Dunwich, depois da Colina de Zaman, nenhuma mão amiga vai te ajudar mesmo… Mas o curioso aqui é que o eu-lírico parece alguém que conhece perfeitamente o Caminho Antigo, e que volta a palmilhar esta trilha, depois de esquecê-la, por algum motivo. Ele até diz que “tinha se esquecido de seu amor por aquele lugar”. Aqui, ou estamos falando de um espaço que só se revela em condições especiais (e para pessoas especiais) ou do retorno desse indivíduo a um lugar de horror. Tomo como peças da memória o fato de ele dizer que haviam coisas ali que “jamais havia visto”. A memória, no próprio poema, é algo fugaz, não muito confiável. O que não norna a situação mais interessante para o pobre narrador.

Os Fungos de Yuggoth (Fungi from Yuggoth, 27 de dezembro de 1929 a 4 de janeiro de 1930). Trinta e seis “pseudo-sonetos” com diferentes métricas, formam este longo poema de Lovecraft, que, apesar de ser um poema muito chato, tem criações ou trabalho com criaturas cósmicas e usos de imagens poéticas (ligadas ao horror) absolutamente aplaudíveis. Pena que esse bom uso da palavra para falar dos tais “fungos” é algo bem pontual. Existem aqui referências a trabalhos já feitos ou que seriam feitos pelo autor. Dentre os principais podemos citar a cidade de Innsmouth; a antiga cidade de Montanhas da Loucura; às criaturas Nightgaunt e Shoggoth e aos Deuses Exteriores.

Como foi dito, o poema se divide em 36 partes. Aqui estão os títulos de cada uma delas: O Livro, A Perseguição, A Chave, Reconhecimento, Volta ao Lar, A Lâmpada, Monte Zaman, O Porto, O Pátio, Os Criadores de Pombos, O Poço, O Uivador, Hespéria, Vento das Estrelas, Antarktos, A Janela, Uma Memória, Os Jardins de Yin, Os Sinos, Espreitadores Noturnos, Nyarlathotep, Azathoth, Miragem, O Canal, Igreja de St. Toad, Os Familiares, O Antigo Farol, Expectativa, Nostalgia, Pano de Fundo, O Habitante, Alienação, Apitos do Porto, Recaptura, Estrela Vésper, Continuidade.

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