A sinopse da primeira edição desse arco nos apresenta de maneira bastante direta a perversa situação que a dupla Giancarlo Berardi e Maurizio Mantero irá trabalhar nessa história: “três pessoas se suicidam ao mesmo tempo e de formas bem impactantes. Todas eram seguidoras de uma seita suspeita de utilizar de métodos como lavagem cerebral para manter seus fiéis e que pode estar preparando um suicídio ritual coletivo“. Seitas são organizações bastante complexas em sua formação e bastante heterogêneas em seus intentos também. Em países profundamente religiosos como o Brasil, esse tipo de grupo é perfeitamente compreensível/identificável, uma vez que temos um número considerável de seitas ou de organizações religiosas que agem como seitas espalhadas por todo o território nacional, com atitudes que não chegam a grandes extremos estatísticos de violência física assumida (como organização), mas certamente levam essa presença para o discurso cotidiano, para as relações sociais e, na última década, para a política, com a obtusa Bancada Evangélica formada nas eleições de 2014 e que iniciou a sua primeira legislatura em 2015.
Nesse arco, os autores fazem uma referência aos Filhos de Satã, grupo que apareceu apenas citado na edição de estreia da série, Os Olhos do Abismo, e que um dos seguidores dos Filhos do Sol, aqui, cita como algo que Júlia Kendall combateu no passado. Dá a entender que também era um grupo de ordem religiosa, uma seita, mas nada é cravado definitivamente, pois pode ser apenas um nome icônico para um ajuntamento que nada tinha a ver com sobrenatural e a fé. Saberemos no futuro da série. Esse ambiente de fanatismo, porém, é explorado lentamente nas duas edições, com uma história que começa mostrando nuances inicialmente incompreensíveis de alguns personagens e logo depois vai nos entregando as terríveis respostas.
Vejo nessas edições um procedimento investigativo mais formal e mais analítico. O roteiro dedica bastante tempo não só contextualizando a seita (e tomando cuidado para não generalizar as propostas, fazendo a separação entre os diferentes impactos que esse tipo de grupo pode causar em seus seguidores), mas também exibindo os perfis de quem se entregam a essa jornada e a face de quem normalmente lidera algo assim. É nesse ponto que o leitor começa a sentir a raiva que constantemente ataca quem lê Júlia. Temos raiva das pessoas que se dispõem a fazer o que o líder psicopata pede — e por outro lado consideramos essa raiva, ao entendermos a fragilidade ou o desequilíbrio emocional, comportamental e psíquico desses indivíduos — e temos raiva do grande responsável por tudo, Vic Schreber ou Padre Connors… especialmente no final, quando a explicação “mundana” para a existência da seita vem à tona. E como já era de se esperar, havia crimes de tráfico e muita intenção em ganhar dinheiro por trás de tudo.
Chama a atenção também a maneira fluída e muito bem-vinda como o roteiro voltou a explorar Júlia, Ben Irving e Alan Webb, estabelecendo uma maior familiaridade, fortalecendo os laços entre eles e dando a oportunidade de terem outras conversas para além das questões de trabalho. Não me entendam mal: eu adoro tudo relacionado aos diálogos entre esses personagens, e acho o trabalho que os autores fizeram com eles até aqui realmente notável. Mas quando temos uma mudança interessante de abordagem a esse nível, não há como não ficar empolgado. Com Webb fora de cena por um tempo, após ser baleado, o fofucho (em todos os sentidos) do Sargento Irving ganha destaque e é muito bacana a conversa que ele tem com Júlia no avião, quando estão indo para o Reino Unido. Mais interessante ainda é a consequência benéfica disso, utilizada para finalizar com muita delicadeza a 20ª edição.
A arte de Enio e Valerio Piccioni procura explorar mais a tensão e a angústia do leitor do que assumir as figurações típicas do giallo no momento das mortes, o que foi uma decisão acertada. Desde o trio de suicidas que abrem as portas do horror, na primeira parte do arco, somos colocados na expectativa de que logo mais o líder dos Filhos do Sol ordenará que alguns de seus seguidores façam um sacrifício pessoal em nome de Aton, do Deus Sol. E nesse ponto, vale destacar a enervante cena do barco em frente à praça, onde os indivíduos se afogam propositalmente. Confesso que cheguei a ranger os dentes de tensão, porque a arte alterna entre os rostos e o contexto visual, mostrando os fanáticos se matando e os espectadores numa posição em que não podem fazer nada para salvar aquelas vidas. É para fazer a gente suar mesmo.
Com uma abertura maior para interação entre personagens do cânone e abordando um tema crítico e socialmente importante (de forma corajosa, aliás. Não se esqueçam de que estamos falando de uma publicação italiana e tudo o que tem a ver com religião, nesse país, pega fogo) Os Filhos do Sol e Céu Negro parece mais a descrição detalhada feita por uma reportagem sobre um caso similar (David Koresh, do Ramo Davidiano, é citado nominalmente aqui, por sinal!) do que uma ficção em quadrinhos. O andamento é diferente daquilo que estamos acostumados na série e o tratamento para o objeto em discussão também, ambos trazendo algo novo sem romper com aquilo que a série tem de melhor, ou seja, eis um bom sinal de evolução narrativa.
Julia – Le avventure di una criminologa – Vol. 19 e 20: Os Filhos do Sol e Céu Negro (L’occhio del sole / Cielo nero) — Itália, abril e maio de 2000
No Brasil: (Mythos, junho e julho de 2006)
Roteiro: Giancarlo Berardi, Maurizio Mantero
Arte: Enio, Valerio Piccioni
Capa: Marco Soldi
260 páginas