Enquanto a Cidade Queima apresenta uma porção de referências interessantes a outras histórias de Júlia Kendall, a começar pela temática central. Na edição #4 da série, intitulada Dilúvio de Fogo, vimos uma abordagem bem interessante para o tema dos incêndios, embora o princípio fosse o de um dinamitador que queria fazer justiça com as próprias mãos e gerar o caos na cidade, como vingança. Na presente edição, porém, o caso é diferente. Estamos diante do perfil de um criminoso que está colocando fogo em prédios cada vez maiores de Garden City, deixando a polícia desesperada. Paralelamente a essa linha investigativa, temos uma história envolvendo o mecânico de Júlia e um comportamento bem estranho de Webb a maior parte do tempo — a ponto de a criminóloga perguntar a Ben se o chefe está sofrendo alguma sequela do ferimento que recebeu em Os Filhos do Sol.
Para mim, as histórias paralelas são as mais interessantes da edição, vencendo, em qualidade e engajamento, a trama central. O bloco com o mecânico de Julia traz Leo novamente à cena, e é sempre muito bom ver o personagem, com seu código de ética durão, tomando em suas mãos um princípio de justiça eticamente questionável, mas que dentro de determinados contextos — como os que são apresentados aqui… ou em qualquer espaço em que tenhamos máfias e grupos que conseguem se safar da prisão por brechas na lei ou por corrupção do judiciário, de policiais e de alguns políticos — torna-se perfeitamente compreensível e até “aceitável”. O fato de envolver relações amorosas de um lado e, de outro, tráfico humano, prostituição e violência contra a mulher, torna a trama ainda mais densa, e não é de espantar que a atenção do roteiro de Berardi e Mantero tenha dado muito valor e espaço a esse ponto do enredo.
Embora a estranheza comportamental de Webb tenha uma motivação que acaba sendo explicada no final, de forma cômica e cínica, o leitor se deleita enquanto a mudança dura, especialmente nos pontos em que ele deveria bater boca com Julia, mas simplesmente deixa o barco correr e dá razão imediatamente à criminóloga, o que é impensável. Isso faz com que a investigação tenha, inclusive, um princípio diferente nessa edição, com narrações e encadeamento do procedimento policial um tanto mais “impessoal”; como se estivéssemos diante de um “irreconhecível personagem recorrente“, no bom sentido da definição. Ainda assim, a citação ao Professor Platt, psicólogo de Melanie Ross em A Sombra do Tempo e as piscadelas do próprio texto para esse comportamento diferente de Webb indicam ao leitor que tudo não passa de uma transformação temporária, um mau humor gerado pela abstinência do cigarro.
Ver o que algumas pessoas são capazes de fazer para sair de um aperto financeiro ou para obter algum tipo de vantagem envolvendo dinheiro é sempre um tema que gera histórias reflexivas sobre o comportamento humano, sobre a possibilidade (ou não) de alguns sentirem culpa diante de seus atos, e sobre as várias faces que podem exibir, dependendo do grupo social em que está e do público para quem fala. Isso se aplica aos dois blocos criminosos em andamento neste volume. E nesse ponto, o encerramento é igualmente muito bom para ambos, embora eu ainda tenha uma tendência para o bloco do mecânico de Júlia, talvez por ter uma sensação de “repetição” (embora não haja) na abordagem central do roteiro.
Júlia Kendall – Vol. 26: Enquanto a Cidade Queima (Mentre la città brucia) — Itália, novembro de 2000
No Brasil: Mythos, janeiro de 2007 e fevereiro de 2022
Roteiro: Giancarlo Berardi, Maurizio Mantero
Arte: Giancarlo Caracuzzo, com colaboração de Laura Zuccheri
Capa: Marco Soldi
Tradução: Paulo Guanaes (edição de 2007) e Júlio Schneider (edição de 2022)
132 páginas
