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Crítica | Júlia Kendall – Vol. 24: O Expresso da Aventura

Um tenso caso de sequestro.

por Luiz Santiago
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O Expresso da Aventura é, até agora, a história de Júlia Kendall que mais referências fez à obra de Alfred Hitchcock, além de trabalhar de maneira mais direta uma outra referência na seara do mistério: o clássico romance Assassinato no Expresso do Oriente, de Agatha Christie. É uma mistura interessante, um tanto incomum para as histórias dessa personagem da Bonelli, pela quantidade com que aparecem no enredo (evidente que já tivemos referências de peso antes, mas nunca em tão grande quantidade e com uso tão enraizado na própria proposta da narrativa), ou seja, todas são referências muitíssimo bem utilizadas pelos escritores Giancarlo Berardi e Maurizio Mantero, que desta vez estão muito mais interessados na criação de uma atmosfera permanentemente tensa e cheia de detalhes suspeitos para deixar o leitor roendo as unhas. A isto somamos o caso a ser resolvido nesta edição, que é o sequestro de Kelly Colbert, uma garotinha de pais muito ricos que devem agora pagar uma enorme soma em dinheiro para terem sua filha de volta.

A preparação do ambiente é deliciosamente clássica. O texto parece mesmo um roteiro de cinema, muito ancorado em planos e em espaços que sempre estão mostrando lados diferentes para o leitor, núcleos de diferentes personagens que, em breve, se encontrariam num espaço bem mais apertado. E a princípio, tudo parece seguir sem grandes problemas. Júlia não tem grandiosos compromissos e nem casos urgentes para resolver, o que a coloca — devido a uma grande nevasca — em um trem onde a história aqui ganha corpo. O texto passa a flertar com os elementos vindos de Expresso do Oriente já na cena da plataforma, e é nesse momento que também vemos a primeira relação com a obra do Mestre do Suspense acontecer: um homem com a exata figura do diretor britânico sobe no trem levando o seu violoncelo; a divertida recriação de uma cena de Pacto Sinistro (Strangers on a Train, no original).

A gente passa de um momento de imensa tensão do “mundo exterior” para a concentração desse medo em um espaço fechado, com Júlia presente para ajudar a resolver o caso. O problema é que a presença da criminóloga, no início, não nos acalma. Nós tememos pela menina sequestrada e, em poucas cenas, percebemos que os bandidos modificaram a aparência da garota, cortando seus cabelos e pintando-os de outra cor. A construção que Júlia começa a fazer do perfil infantil demora um pouco, uma porque ela sofre de “síndrome de viagem” (o pesadelo aqui tem a ver com isso, inclusive) e outra porque crianças brigadas com os pais podem reagir de forma bastante extrema, às vezes dando a entender algo que não existe. Pouco a pouco, os roteiristas nos angustiam com a perspectiva de o sequestro seguir adiante. Tememos pela segurança da garota e não temos certeza até que ponto os criminosos estão dispostos a ir para conseguir o que querem. E bem… a intensa reta final da história nos mostra exatamente a resposta para essa dúvida.

Tim O’Leary, o ladrão-companheiro de Júlia nessa viagem é outro personagem interessantíssimo. Ele tem as feições e o modo de se vestir de Cary Grant em Ladrão de Casaca, ligação que em tudo tem a ver com o personagem. A reação dele com Júlia é breve, mas para mim foi um dos melhores diálogos que ela já teve com um possível interesse amoroso — e isso é ainda mais forte aqui porque está mostrado em dose dupla: há um outro passageiro, um viúvo, que está paquerando a criminóloga desde o primeiro jantar no trem. É curioso notarmos como o diálogo entre ela e esse viúvo é travado e como as conversas, os olhares e a interação dela com Tim se dão. Aliás, todas as relações aqui são verdadeiramente bem escritas. Gosto muito de aventuras claustrofóbicas e com vários personagens encontrando-se com pessoas diferentes no desenvolvimento de seus dilemas, e aqui temos tudo isso, com a adição de um crime de peso sendo cometido enquanto esses contatos são realizados.

Até elementos de A Dama Oculta podemos encontrar aqui, refigurados no casal de idosos que dizem estar viajando em uma “nova Lua-de-mel“. Apesar de ter identificado muito cedo a referência, eu não esperava a surpresa que teríamos com esses personagens mais adiante, de modo que fiquei boquiaberto quando as máscaras caíram — aliás, a revelação oficial a respeito deles, ao término da história, é tenebrosa. Os típicos assassinos insuspeitos! Só não dou uma nota maior para O Expresso da Aventura porque acho que o finalzinho (literalmente as duas últimas páginas) não estão no mesmo nível do intenso desenvolvimento. É como se faltassem algumas cenas de ligação ali. O salto narrativo eu entendo, mas pelo menos a arte poderia ter trazido quadros de maior contexto para todo o cenário do trem, onde passamos a maior parte do tempo. É um encerramento pacífico, que fecha bem todas as janelas, mas que está marcado por alguns pontos-cegos no que diz respeito ao visual. Uma das aventuras de Júlia que mais conseguiram segurar a tensão no ar (e olha que já passamos por Horas Suspensas, hein!). Um bom teste para o coração.

Júlia Kendall – Vol. 24: O Expresso da Aventura (Kidnapping Express) — Itália, setembro de 2000
No Brasil:
Mythos Editora, 2006 e 2021
Roteiro: Giancarlo Berardi, Maurizio Mantero
Arte: Claudio Piccoli, Alberto Macagno
Capa: Marco Soldi
130 páginas

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