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Crítica | Judas e o Messias Negro

por Gabriel Zupiroli
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Muito se cobra de uma adaptação biográfica no que remete à verossimilhança para com a realidade. Tende-se a avaliar positivamente um filme que consegue ser “fiel” à história, como se fosse possível uma certa fidelidade aos “fatos”. Entretanto, esquece-se, muitas vezes, de olhar para o filme em si e de compreender que mesmo fatos estão sujeitos a diferentes pontos de vista interpretativos. Judas e o Messias Negro foi, para mim, uma bela surpresa nos dois sentidos da análise: por um lado, trata-se de um filme muito bom, que escapa, em alguns momentos, às formulações esperadas para adentrar com curiosidade em outras possibilidades; por outro, e aqui está em evidência uma opinião sobretudo particular, que não interfere na crítica cinematográfica, a obra manteve um raro senso de “fidelidade” – ainda que esta seja sempre volátil – à história, supreendentemente bradando abertamente o socialismo do Partido dos Panteras Negras.

A direção de Shaka King soa, a princípio, tradicional, apresentando o protagonista de forma bem introdutória, mas se descentraliza logo após as primeiras sequências. O filme, que retrata o informante William O’Neal em sua missão de se infiltrar no Partido e, posteriormente, assassinar seu líder, Fred Hampton, tem dois interesses que ficam bem claros em sua duração. Primeiramente, evidenciar as dinâmicas dos movimentos sociais que existiam nos EUA dos anos 60, o que faz muito bem através da interação entre as diferentes vertentes e seu senso de unicidade para um objetivo maior. Em segundo lugar, trazer um retrato íntimo dos dois personagens que habitam a obra, o que também é muito bem elaborado com a aproximação humana – sem retirar sua “culpa” – do infiltrado e com a entrada na vida de Hampton. Ambas as figuras surgem fortemente construídas, mas apresentando uma intimidade sutil que as completa.

E King entende isso ao escolher filmar alguns momentos de subjetividade com delicadeza e zelo, como a relação entre o líder revolucionário e sua companheira. Já O’Neal é alvo de um jogo muito bem elaborado pela montagem. Há uma dualidade que reflete o personagem ao envolvê-lo no interior do Partido onde, sob uma força catártica, cria-se um tensionamento de, a todo momento, existir uma possibilidade de deserção, e ao inteligentemente retirá-lo deste ambiente com inserções certeiras da sua condição impostora. E tudo isso funciona muito bem pela capacidade da direção de desenhar cenas e sequências com um grande poder simbólico.

Por exemplo, no discurso de Hampton ao voltar da prisão, King monta paralelamente uma exaltação à sua fala, através de uma câmera que gruda em seu rosto e se coloca, por vezes, até sob um ângulo inferior, e um jogo de plano e contraplano entre o informante e o policial, que potencializa a tensão do personagem em sua suposta entrega falsa. É como se, em uma cena que necessitasse da emoção, o diretor soubesse elaborar um envolvimento e um tensionamento simultaneamente. Pelo contrário, a cena do assassinato de Hampton, filmada de uma maneira crua, direta e sem qualquer envolvimento catártico, surge para sedimentar uma espécie de atmosfera desesperançosa que cresce durante todo o filme e termina nesta dissolução.

Mas não que Judas e o Messias Negra seja um filme negativo. Pelo contrário, sua interioridade que contém a exaltação do discurso surge não apenas como homenagem, mas como chamado ao envolvimento. A obra existe não apenas em função de retratar uma vida, e sim para, sobretudo, enaltecer um passado que, embora tenha culminado em um final amargo, pode ressurgir. E isso fica evidente pela forma como todo o movimento do Partido dos Panteras Negras é representado.

O grande problema da direção de Shaka King reside justamente em uma dificuldade para amarrar as boas sequências em um todo. O que, de certa forma, é compreensível para um artista que está na fase inicial de sua carreira. Criando ótimos momentos isolados, que apostam num cinema “transparente”, há uma clara deficiência em compreender o diálogo entre as partes em função de um todo sólido. Dessa maneira, especialmente na segunda metade, há muitos momentos em que a obra soa perdida, como se não soubesse muito bem para onde ir. Não bastando retratar as dinâmicas dos movimentos, esboça algumas possibilidades que se veem logo deixadas de lado para, de maneira extremamente brusca, concluir a narrativa. Para falar a verdade, é como se essa dureza trouxesse consigo as dificuldades escritas. Mas ainda há um problema em como articular tudo, o que não necessariamente arruina o filme, longe disso.

Judas e o Messias Negro realiza um curioso movimento de encarnar uma “honestidade” através de uma encenação muito transparente. Ainda que se distancie um pouco de certos tradicionalismos, aposta em um cinema direto e, ao mesmo tempo, paradoxalmente sutil. É um interessante exercício de construção de figuras e suas camadas, que busca sempre representar seus personagens como objetos verdadeiros, objetos históricos. Neste sentido, vale muito a vista.

Judas e o Messias Negro (Judas and the Black Messiah) – EUA, 2021
Direção: Shaka King
Roteiro: Shaka King, Will Berson
Elenco: Daniel Kaluuya, Lakeith Stanfield, Jesse Plemons, Dominique Fishback, Ashton Sanders, Darell Britt-Gibson, Lil Rel Howery, Algee Smith, Martin Sheen
Duração: 126 min.

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