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Crítica | Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida

por Ritter Fan
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estrelas 4,5

Obs: Leia, aqui, as críticas dos demais filmes da franquia.

Você não experimentou Shakespeare até que você o tenha lido no original Klingon.
Chanceler Gorkon

E a tripulação original completa da Enterprise dá adeus à série que a consagrou e a transformou em nomes citados mesmo por quem não conhece Jornada nas Estrelas. Kirk, Spock, McCoy (ou Magro), Scotty, Chekov, Sulu e Uhura se despedem de maneira mais do que digna, em um filme que usa e abusa de citações a Shakespeare (começando pelo título, retirado de Hamlet) e que de certa forma funciona como um compêndio de tudo que faz Jornada nas Estrelas ser o que é. Além disso, quase que de forma poética, o filme foi lançado pouco mais de um mês depois do falecimento do mítico e controverso Gene Roddenberry, o criador da série, que chegou a assisti-lo no estúdio.

Quando mencionei que Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida tem tudo que sempre caracterizou a série (televisiva e cinematográfica), não estava brincando. A película, que traz Nicholas Meyer de volta à direção depois do inesquecível A Ira de Khan, é um pout pourri de artifícios narrativos clássicos – traições, planos sinistros, reviravoltas, assassinatos, fuga de prisão, batalhas espaciais, lutas mano a mano – reunidos em um roteiro bem amarrado que vai bem além de ser meramente um divertimento descartável e que se mantém fiel à pegada mais cerebral da criação sessentista sem esquecer-se de um certo grau de humor e muita ação e até suspense.

A ideia que deu origem ao roteiro escrito por Meyer e Denny Martin Flinn veio da cabeça de Leonard Nimoy depois que a produção rejeitou o tratamento original de Harve Bennett que queria um prelúdio narrado por McCoy relatando os anos de Academia dele e de Kirk (algo que só viria a ser retomado no reboot light de J.J. Abrams, em 2009). Nimoy visitou Meyer em sua casa, que recebera a missão de criar novo roteiro, um com a tripulação clássica e que fosse também uma despedida, além de comemoração dos 25 anos da série, e passou, em linhas gerais, o seguinte, que parafraseio: “e se fizéssemos a queda do Muro de Berlim no espaço?”. Com isso, Meyer usou a tensa relação entre os Klingons e a Federação para lidar justamente com o fim das animosidades de décadas entre os dois, com direito a uma versão Klingon de Mikhail Gorbachev, o Chanceler Gorkon (David Warner, que vivera outro papel em A Última Fronteira) que vem negociar um tratado de paz e desarmamento depois que Praxis, lua de Kronos, seu planeta natal, explode condenando os belicosos alienígenas à extinção em 50 anos, em um evento que faz mímica do vazamento nuclear em Chernobil, na Ucrânia.

Kirk (William Shatner), então, muito a contragosto, é enviado, faltando três meses para sua aposentadoria e de toda sua tripulação sênior, para escoltar o chanceler até a Terra, para tratativas diplomáticas. Claro que tudo dá muito errado e a narrativa ganha contornos de whodunit investigativo floreado com momentos interessantes, como Kirk e McCoy (DeForest Kelley) tendo que fugir de uma prisão em planeta congelado, Spock tendo que lutar contra seu próprio amigo em um primeiro momento e, claro, twists dignos de filmes do gênero que, se não surpreendem o espectador, pelo menos são muito bem inseridos na narrativa fluida e inteligente.

Mencionei Shakespeare mais acima como algo marcante na fita e realmente as citações do bardo inglês (na verdade, como aprendemos, Shakespeare, assim como o provérbio “vingança é um prato que se come frio”, era Klingon – em referência às apropriações indevidas feitas por Hitler na Alemanha nacional-socialista) abundam e divertem, pois não só é uma constante ao longo da série televisiva e cinematográfica, como realmente os trechos usados são cirurgicamente relevantes para a narrativa, notadamente o undiscovered country do título (região ou terra desconhecida, em português), parte do clássico solilóquio do príncipe dinamarquês que no original se refere à morte, mas que, no filme, se refere ao futuro (ainda que a morte como forma de se alcançar o futuro seja uma constante) . E, o melhor, é que grande parte das citações vem de David Warner e de Christopher Plummer (vivendo o general Klingon Chang, com direito à tapa olho e bigodinho estilo Fu Manchu), dois atores de verve shakespeariana que trazem a devida gravidade ao que é dito, retirando qualquer resquício de exagero que se possa achar dessa escolha do roteiro. Outra bem-vinda adição ao elenco é Kim Cattral, como a vulcana Valeris, protegida de Spock, que tem papel-chave na estrutura narrativa (diz a lenda que Cattral fez um ensaio fotográfico secreto “vestindo” somente as orelhas prostéticas na ponte da Enterprise…).

Meyer não está para brincadeiras e, muito diferente do que foi visto nos dois filmes anteriores, a atmosfera que ele cria com a fotografia de Hiro Narita (Querida, Encolhi as Crianças e Rocketeer) e com a trilha sonora composta pelo então desconhecido Cliff Eidelman, é sóbria e até às vezes pesada. Mas veja bem: não a classifico como sombria, adjetivo esse tão mal interpretado hoje em dia. A sobriedade está na seriedade da trama, na pegada mais realista (especialmente se compararmos com a viagem no tempo em busca de baleias de A Volta para Casa) e no clima de despedida que permeia toda a projeção. Há até mesmo um certo grau de melancolia que é exacerbada pelas discretas conexões com a série A Nova Geração, então a pleno vapor, já que a paz com os Klingons é a ponte para termos Worf como oficial da Enterprise D, valendo notar que Michael Dorn, ator que viveu o personagem, faz também uma ponta como um antepassado de Worf, advogado de defesa de Kirk e McCoy no julgamento. É, inescapavelmente, um adeus.

Mas o refinamento da produção é de se tirar o chapéu. Diferente de todos os demais longas da série, os efeitos especiais, aqui, são do mais alto gabarito, mesmo considerando que o orçamento não foi muito alto. A ILM volta à bordo da Enterprise para esmerar-se na computação gráfica tanto das tomadas no espaço quanto na excelente sequência dos assassinatos, com direito a gotas flutuantes de sangue em ótimo CGI. Os efeitos práticos também não ficam atrás, com reconstruções das pontes da nave principal e também da Excelsior, agora comandada por Sulu (George Takei) de maneiras ligeiramente diferentes, integrando-as melhor ao espaço cênico que é muito bem utilizado por Meyer. E, claro, como não mencionar o sensacional trabalho de maquiagem (que concorreu ao Oscar) e de figurino que dão vida de verdade aos Klingons, cada um com sua característica física distintiva que impedem confusão e emprestam personalidade a cada um deles, mesmo aos mais desimportantes.

A trilha sonora do já mencionado Eidelman foi outra escolha acertada. Assim como em Jornada nas Estrelas IV, o tema original composto por Alexander Courage foi colocado de lado, abrindo espaço para composições originais muito eficientes em tornar mais pesada a atmosfera da produção, sem que passasse desesperança. Cada situação tem sua pegada musical, inclusive os breves momentos de comicidade e a sincronização de Meyer evita que sentimentos sejam telegrafados exageradamente, especialmente na investigação sobre quem é o traidor.

Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida é a grande e pomposa despedida que a tripulação original da NCC-1701 merecia  no cinema (sim, Kirk, Scotty e Chekov voltariam em Generations, mas falo do grupo completo!). Gene Roddenberry, tenho certeza, ficou orgulhoso.

Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida (Star Trek VI: The Undiscovered Country, EUA – 1991)
Direção: Nicholas Meyer
Roteiro: Nicholas Meyer, Denny Martin Flinn, baseado em história de Leonard Nimoy, Lawrence Konner e Mark Rosenthal e na criação de Gene Roddenberry
Elenco: William Shatner, Leonard Nimoy, DeForest Kelley, James Doohan, George Takei, Walter Koenig, Nichelle Nichols, Kim Cattrall, Mark Lenard, Grace Lee Whitney, Brock Peters, Leon Russom, Kurtwood Smith, Christopher Plummer, Rosanna DeSoto, David Warner, John Schuck, Michael Dorn, Paul Rossilli
Duração: 113 min.


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