Johnny Guitar foi o segundo western de Nicholas Ray (o primeiro foi Paixão de Bravo, lançado dois anos antes) e o seu primeiro filme em cores. E que cores! Utilizando o processo Truecolor, desenvolvido por uma divisão da Republic Pictures – estúdio que produziu o filme –, o fotógrafo Harry Stradling Sr. colocou na tela uma bela composição cromática em forte contraste e de alternância entre filtros suaves e luz dura, jogo estético que contribuiu para a construção do pódio de western cult que o longa alcançaria no futuro, após o fracasso de público e crítica no momento de seu lançamento.
Nicholas Ray se aventurava na terra sagrada do gênero americano por excelência desestruturando suas premissas e politizando o cenário com veladas indicações, tais como a escalação de um elenco envolvido até os dentes no episódio da Caça às Bruxas do Senador McCarthy e diálogos sintomáticos, como aquele no qual ouvimos a seguinte frase, “Eu não aperto a mão de atiradores canhotos”.
O texto foi creditado a Philip Yordan, embora Ben Maddow e o próprio Ray tenham contribuído na escrita e reajuste de alguns rumos dramáticos, especialmente os que envolviam a atriz Joan Crawford, conhecida por seus ataques de estrelismo e difícil trato com alguns colegas no set. Em Johnny Guitar, a triz conseguiu fazer de sua antagonista diegética, a atriz Mercedes McCambridge, uma nova inimiga na vida real. Nicholas Ray, que via um enorme potencial dramatúrgico nessa briga, não fez nada para aplacá-la, já que pretendia usar a inimizade entre as atrizes como trampolim para suas personagens, algo que funcionou perfeitamente bem no longa.
O que se destaca à primeira vista em Johnny Guitar é a colocação das mulheres como dominadoras dos negócios da cidade e os homens como (nas palavras de Truffaut) “bailarinas que desmaiam e se veem em pequenas brigas por coisas pequenas”. Em certo ponto vemos também a covardia masculina desfilar na tela enquanto a bravura das duas mulheres protagonistas é destacada quase religiosamente. E vejam que não coloco isso como algo negativo, é apenas uma interessantíssima constatação e certamente o motivo pelo qual o público e a crítica americana rechaçaram o filme.
Mas além da revolução conceitual em colocar a mulher no pódio de atenções, o roteiro de Johnny Guitar possui uma composição no mínimo literária, com camadas e camadas de filosofia e frases de efeito por personagem. É como se cada um quisesse deixar uma marca de ironia, cinismo ou alfinetada verbal para a posteridade ou para as lendas do Oeste. Todos são agressivos à sua maneira e tentam desbancar seu oponente com tiradas que nos fazem rir e assentir com uma estranha cumplicidade, porque é justamente essa a postura que adotamos quando estamos em uma discussão verbal com alguém – essa similaridade de comportamento alcança um patamar dual no longa porque a fotografia e o desenho de produção são irreais (já comentamos sobre método Truecolor) e esse contraste entre verbalização e essência estética ora nos confunde, ora nos encanta e por fim nos faz entender a louvável intenção de Nicholas Ray na construção teatral e ao mesmo tempo realista do cenário do Oeste.
Na esteira dos conflitos, a história de rancho e da Union Pacific se misturam, colocando o medo da chegada da ferrovia ao lado de problemas já presentes na pequena cidade. Várias leituras podem ser feitas em torno disso e o mesmo vale para as personagens de Crawford e McCambridge no que toca ao possível caso/sentimento homossexual velado entre elas.
Com uma única grande falha – o incoerente beijo final – Johnny Guitar é uma das grandes obras da transformação e variação do western nos anos 1950. Um ousado filme de Nicholas Ray.
Johnny Guitar (EUA, 1954)
Direção: Nicholas Ray
Roteiro: Philip Yordan (baseado na obra de Roy Chanslor)
Roteiristas não creditados: Ben Maddow, Nicholas Ray
Elenco: Joan Crawford, Sterling Hayden, Mercedes McCambridge, Scott Brady, Ward Bond, Ben Cooper, Ernest Borgnine, John Carradine, Royal Dano, Frank Ferguson, Paul Fix, Rhys Williams
Duração: 110 min.