Quando se fala de franquias, é de praxe questionar o que justifica suas respectivas sequências, com a resposta normalmente não fugindo muito da promessa de ameaças e riscos maiores como desafios. Em se tratando da saga John Wick, ela sempre teve ao seu favor as informações mínimas sobre a Alta Cúpula, o que permitia usar qualquer peça desse quebra-cabeça como forma de voltar ao jogo. A graça de ter um fiapo de trama genérica servindo de subversão satírica aos tropos dos brucutus do cinema americano está na intrínseca composição de Wick: melancólico, desengonçado, sem corpo maromba, uma figura implacável, temida; um lendário pesadelo sendo caçado e que não pode ser morto e a performance autocontida, intensa e expressiva de Keanu Reeves e que agora está ainda mais sintonizado com o personagem título.
Não restam dúvidas que a saga do Baba Yaga tem sido uma das mais distintas e consistentes do gênero, e a busca para entregar um espetáculo a cada novo capítulo demonstra estar em seu estado mais cínico dada a forma quase ritualística com que Chad Stahelski inicia John Wick: Chapter 4 ao situar seu protagonista, depois, na sequência introdutória que carrega marcantes traços visuais à fotografia e ambientação de Parabellum, o que serve como um exercício de despedida a essa estética antes de abraçar as características cores vibrantes e underground dos primeiros filmes. Aliás, tal exercício contém um lúdico aceno, como se nunca tivesse pausado o jogo, de que o intervalo de quase quatro anos entre o lançamento de Parabellum e Baba Yaga para uma franquia que soma nove anos nada tem a ver com a realidade extraordinária e feroz do submundo de mercenários e a Alta Cúpula. Há uma dança, um espetáculo que nunca para em John Wick, e isso se traduz para números ainda mais exuberantes.
Desse modo, mesmo para um dos capítulos mais extensos da saga, é como Stahelski apresenta os poucos momentos de pausa antes da ação desenfreada e de ritmo pulsante. O trecho que o filme se prepara as sequências de ação e sinaliza isso com um jogo de luzes na fotografia orquestrada por Dan Laustsen, é certeiro para determinar “a volta ao jogo”, e como há um caminho de pura beleza caótica que compõe os diferentes cenários e que isso está longe de se tornar cansativo; é uma fuga para um entretenimento violento, visualmente atraente e agora menos suntuoso, mas que segue apostando na estética como princípio da realidade com números cada vez mais absurdos. Por isso, o roteiro escrito por Shay Hatten e Michael Finch não faz um esforço para aprofundar a trama, apenas sabe como organizar os elementos necessários para impulsionar a ação.
E pelo mesmo motivo, é como a inserção de novos personagens sempre funciona, uma vez que são peças ao redor do mitológico Baba Yaga, mas que conseguem desempenhar papéis satisfatórios dentro do tempo de ação sem ofuscar o misticismo com que John Wick se move com poucas palavras, mas embalado no característico terno preto e técnicas de luta. Com muita simplicidade, o roteiro faz a tarefa de expandir as intermináveis figuras que integram a Alta Cúpula nesse longo número de dança que se estende entre personagens, cenários e coreografias. É como se fosse uma partida de jogo regida pelas próprias regras, ainda pouco conhecidas, mas que servem ao espetáculo de filme ação masterpiece que se propõe. A dinâmica de cenários pula de Nova York, Japão, depois de Alemanha a Paris sem perder de vista longas tomadas fascinantes de ação cada vez mais desafiadoras.
A sequência — atrelada a trilha sonora atmosférica de Tyler Bates e Joel J. Richard — de perseguição e pancadaria no meio de uma balada underground na Alemanha emplacada com um primoroso jogo de iluminação e câmera lenta, é só um dos exemplos insanos da ação estilosa e criativa de Stahelski, sempre buscando renovar os movimentos e planos a novos níveis. Nesse sentido, é onde se concentra o controle de direção de Stahelski, o que faz John Wick ser um ponto fora da curva dentre os títulos do gênero ao compor um épico filme repleto de clímax. A cena que desenrola no Arco do Triunfo, em Paris, é o outro exemplo da forma metricamente calculada com que a ação acontece na franquia, onde figurantes não são apenas figurantes, mas peças fundamentais para o espetáculo imagético de destruição, violência, embates físicos, dos oponentes que surgem em vão para derrubar o Baba Yaga em troca de recompensa, e também, é um exemplo de como Stahelski referência o gênero — com acenos direitos aos filmes de faroeste — enquanto explora um estilismo próprio em linguagem e mitologia.
Usando o humor de forma mais sarcástica, os alívios cômicos surgem de maneira consciente, uma reação a ação desmedida. E sem deixar cair num espetáculo desprovido de substância, a ação não esquece do cerne satírico a figura dos brucutus servindo até como uma alegoria ao misticismo em torno de Wick como um aparente imortal e sua busca por liberdade — sendo a cena da escadaria de Sacre Coeur um espelhamento do mito de Sísifo ao mito do bicho-papão, o Baba Yaga, em guerra por absolvição. Alcançando um refrescante nível de criatividade na sua direção, Stahelski posiciona John Wick como uma das franquias mais inovadoras do gênero, ao fazer de Baba Yaga um épico de ação que atinge seu ápice ao abraçar as possibilidades mais insanas em prol do entretenimento.
John Wick 4: Baba Yaga (John Wick: Chapter 4 – EUA, 2023)
Direção: Chad Stahelski
Roteiro: Shay Hatten, Michael Finch
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Ian McShane, Lance Reddick, Bill Skarsgård, Donnie Yen, Hiroyuki Sanada, Shamier Anderson, Clancy Brown, Rina Sawayama
Duração: 169 min.