Baseado no livro A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, de Suzanne Collins, que por sua vez é um prelúdio sobre o principal antagonista da célebre Trilogia Jogos Vorazes e suas famosas adaptações cinematográficas, a quarta empreitada da franquia soa como um conteúdo dispensável. Obviamente que o universo distópico criado por Collins tem espaço para novas narrativas, mas tecer uma história de origem sobre um vilão já bem estabelecido não é algo, na minha opinião, exatamente interessante, seja porque conhecemos o desfecho do arco do personagem, seja porque a autora traz uma trama de pouca novidade para o desgastado subgênero de livros para Jovens Adultos. Mas, bem, a escritora é boa, o livro fez sucesso e cá estamos com a nova adaptação para as telonas.
Francis Lawrence retorna novamente à cadeira de diretor após ter encabeçado três longas-metragens da cinessérie, acompanhado dos roteiristas Michael Lesslie e Michael Arndt, que ganham a difícil tarefa de adaptar o conto de um jovem Coriolanus Snow (Tom Blyth) em seus primeiros passos para se tornar o líder tirânico de Panem e o manipulador dos Jogos Vorazes. Aqui, o futuro vilão começa como um garoto pobre que está desesperadamente tentando restaurar o poder e a propriedade de sua família após a morte de seu pai, Crassus Snow, durante a Primeira Rebelião dos distritos. O protagonista encontra uma oportunidade quando é indicado por Cas Highbottom (Peter Dinklage) e Volumnia Gaul (Viola Davis), dois idealizadores dos jogos, a se tornar mentor de um tributo, a carismática e sagaz Lucy Gray Baird (Rachel Zegler).
A mudança de perspectiva da história dos jogos me chama a atenção desde o início. Mesmo que Lucy seja uma personagem de destaque, a intenção do roteiro é explorar mais o espaço da capital em que Snow reside, com a primeira metade da narrativa dedicando tempo para os bastidores da carnificina televisiva pelas lentes da alta sociedade de Panem. A representação desse cenário da história cai em certos maniqueísmos chatos, em que alguns personagens são monstros, como a vilã caricata – ainda que divertida – de Davis, e outros são lutadores da liberdade, como o chatíssimo Sejanus Plinth (Josh Andrés Rivera), que grita a todo instante as críticas superficiais da história num desenvolvimento fraco e pouco maduro dos temas sobre rebelião da franquia. Também existe um enorme desperdício na falta de exploração da capital para além da já esperada arrogância e pretensiosismo dos ricos.
Todavia, o personagem de Snow funciona. Blyth não é tão magnético quanto Donald Sutherland, mas consegue transpassar a ambiguidade que persegue os olhos e as ações do antagonista, principalmente aqui em sua juventude, ainda navegando entre egoísmo e empatia, entre manipulação e sinceridade. A escolha em torná-lo um pobretão ajuda a criar simpatia pelo personagem e em estabelecer uma conexão orgânica com Lucy, mas a produção felizmente não justifica a maldade de Snow. Apenas nos mostra sua ascensão ao poder e a derrocada para suas piores características, sem nunca torná-lo completamente unidimensional. Em termos dramáticos, o personagem não ganha tanta dimensão, mas seu arco é relativamente intrigante na maneira que gradualmente vemos suas escolhas cuidadosas e manipulativas tomarem forma no Snow que vimos na trilogia original.
Algo que também acho interessante no longa, para bem ou para mal, é a representação rudimentar dos jogos. No início do filme temos um simples zoológico humano e o palco da competição mortal lembra mais o Coliseu do que a floresta sci-fi da primeira vez que descobrimos os jogos. A ideia da história é nos mostrar a transição da competição para algo mais próximo do reality show que vimos posteriormente, coincidindo com a ascensão de Snow e suas sugestões que deram forma a versão moderna da competição, algo que começa a engatinhar aqui com a apresentação retrofuturística de Lucky Flickerman (Jason Schwartzman), doações do público, drones e a aproximação dos participantes. Isso, porém, limita o próprio senso de escala do filme, que é mais gladiador do que puro espetáculo, mais bruto do que inovador, algo que tem incitado críticas por parte da audiência sobre a falta de entretenimento do filme das quais compartilho, mesmo entendendo que Lawrence e a produção tinham menos escopo para trabalhar esse lado da história por conta da própria premissa.
Resumindo: os jogos são meio chatinhos dessa vez, até porque a trama de sobrevivência de Lucy é subsidiária ao arco de Snow, tornando a narrativa um pouco mais distante da competição, que é o grande chamativo visual e impactante da franquia. Mas vale ressaltar que a produção poderia ter tido mais criatividade em termos de ação e na própria construção dos participantes dos jogos, que são menos carismáticos e desprovidos da personalidade que vimos nos jogadores dos outros longas. Até as camadas sobre a revolução são deixadas de lado, ganhando representação aqui e ali em meio a obviedades do texto, como citei anteriormente, com o longa tentando imprimir uma característica musical com Lucy que não funcionou comigo em nenhum instante na interpretação forçadamente teatral de Zegler e na composição deslocada que esses momentos chegam.
Também é estranho como os jogos acabam na metade do filme, fazendo com que o ato final pareça mais um epílogo do que um clímax. A narrativa se arrasta entre um romance aguado entre Snow e Lucy, e mais representações genéricas sobre revolução, ainda que a boa virada (a)moral do protagonista aconteça justamente como resultado dessa linha narrativa. Talvez o filme funcione melhor como estudo de personagem do que como um épico de ação blockbuster, não é mesmo? Penso que a produção poderia ter equilibrado melhor as diferentes facetas do prelúdio de Collins, como a cinessérie de Katniss faz tão bem, mas faltou drama, vulnerabilidade, personalidade e escopo para que a história de origem fosse próxima da jornada da Garota em Chamas.
Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes é um filme cansado, seja por sua premissa batida, falta de inovação visual ou narrativa com os temas da franquia e uma duração de quase três horas que ultrapassa sua estadia, como um parente que veio para o almoço e ficou para o jantar. A narrativa toda parece redundante e anticlimática, por mais que a produção ainda encontre seus momentos de qualidade justamente porque Snow é um personagem intrigante e porque o material original de Collins é bem escrito. No fim, não vou chamar o filme de desnecessário, mas não penso que ele seja realmente relevante para a franquia. É mais uma história de curiosidade.
Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (The Hunger Games: The Ballad of Songbirds & Snakes – EUA, 2023)
Direção: Francis Lawrence
Roteiro: Michael Lesslie, Michael Arndt
Elenco: Tom Blyth, Rachel Zegler, Peter Dinklage, Jason Schwartzman, Hunter Schafer, Josh Andrés Rivera, Viola Davis
Duração: 157 min.