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Crítica | Jogos Mortais X

Jigsaw está de volta tão intenso, sangrento e violento com os seus antecessores.

por Leonardo Campos
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A franquia Jogos Mortais é um projeto de sucesso. Desde o primeiro filme, lançado em 2004, o suplício e o horror corporal tomaram conta das salas de cinema. Diversas produções retrataram a tortura, a dor e a morte como espetáculo para envolver as plateias, algo que não é uma novidade, haja vista a longa trajetória do subgênero slasher e dos seus traços antepassados no Grand Guignol. A peculiaridade na saga de Jigsaw, por sua vez, é o alinhamento filosófico proposto pelo texto. Sem adentrar especificamente nos méritos estéticos e dramáticos que delineiam a qualidade narrativa do que é apresentado, os filmes da franquia, em especial, os primeiros, dialogam com uma interessante questão sobre ética, moral e valorização da vida. O “monstro” aqui, estruturado por uma humanidade hedionda, assume um lugar de poder para colocar as suas vítimas, outrora em posição de algozes, num tenebroso jogo onde é preciso refletir sobre causas e consequências, tendo em vista dar o máximo de sangue para assegurar a sobrevivência. Aqui, temos uma história situada entre o primeiro e o segundo filme, escolha dos realizadores interessados em retomar os filmes deste universo, mas limitados pela cronologia que já tinha criado bifurcações demais ao longo de nove filmes.

Como sabemos desde a primeira inserção em 2004, John Kramer, interpretado por Tobin Bell, sofre de um câncer cerebral em estágio terminal. O seu modo de operação, inspirado em sua experiência como arquiteto e engenheiro, é colocar as pessoas que não valorizam a vida em situações de reflexão. Pessoas que gozam de boa saúde, mas não aproveitam as suas caminhadas neste “plano”, ou aqueles que, munidos da manipulação e da falta de comprometimento com o outro, prejudicam a existência alheia por meio de atos corruptos de todo tipo. Aqui, no intermédio entre os dois primeiros filmes, ele faz uma viagem para o México em busca de um tratamento milagroso não aprovado pelo Conselho de Medicina dos Estados Unidos. É um procedimento polêmico, abordado de forma secreta por um suposto grupo de especialistas. O problema é que John Kramer descobre que foi enganado, pois tudo não passa de uma farsa para enganar as pessoas que recorrem ao tal tratamento. O andar deste processo, caro leitor, dispensa mais explanações, não é mesmo? Um a um, os envolvidos na trapaça se tornam alvo dos jogos sangrentos do personagem, mais uma vez apoiado por Amanda (Shawnee Smith), uma das únicas sobreviventes de suas armadilhas, figura ficcional que se tornou uma aliada.

Assim, mais uma vez, o suplício é a proposta pedagógica para as ações de John Kramer. Ele coloca em cena situações que dialogam bastante com as considerações sobre a punição de transgressores, algo que o filósofo Michel Foucault reflete em Vigiar e Punir, livro que retrata as práticas coercitivas ao longo da história da humanidade, geralmente praticadas para sacolejar aqueles que desviam das condutas vigentes. Com menor presença em cena em comparação aos antecessores, o ventríloquo Billy ressurge para amarrar as diversas referências do atual ao legado da franquia. Trajado com sua roupa com presença do preto, do branco e do vermelho, ele traz em si as trevas, os ossos e o sangue, palavras-chave que definem muito bem o universo de Jogos Mortais. E, ainda sobre a questão do suplício, pelo que podemos observar no filme, Jigsaw não pretende exaurir os corpos de suas vítimas, dando como fim o extermínio, mas adestra-los, tendo em vista encaminhá-los de volta para os limites da norma, tudo isso, por meio de sua lógica questionável (ou não, quem sabe?).

O desenvolvimento de Jogos Mortais X é o mais longo da franquia. São 118 minutos de narrativa. Visualmente, a experiência continua extremamente violenta. A supervisão de efeitos na maquiagem, assinada por Justin Raleigh, da Fractured FX, entrega para o público o habitual na jornada pavimentada pelos filmes de Jigsaw: armadilhas criativas, absurdamente sangrentas, acompanhadas pela trilha sonora eficiente de Charlie Clouser, responsável por trazer mais uma variação do tema principal em consonância com uma textura percussiva expressiva para o império de horror proposto pelo agente punitivo interpretado por Bell. A direção de fotografia de Nick Matthews trabalha com enquadramentos expositivos, transformando a experiência em algo para ser visto de todas as perspectivas possíveis. É preciso demonstrar o personagem em momentos de dor e sofrimento por múltiplos ângulos. Os espaços por onde circundam as figuras ficcionais também são estabelecidos com assertividade para a proposta narrativa, trabalho de responsabilidade do design de produção de Anthony Stably, setor que cria a atmosfera de trevas, cenários semelhantes aos calabouços medievais de onde os realizadores tiraram as inspirações para a aplicação do suplício como estratégia coercitiva.

Ademais, pelo que podemos contemplar no desfecho, este não será o último filme da jornada. É possível que haja novas brechas entre as demais sequências, tal como fizeram com este capítulo que posso considerar bem sucedido para Jigsaw. É tudo diferente dos antecessores no quesito desenvolvimento narrativo, mas a estética e a história, bem como a proposta, continuam sendo as mesmas. Com Jogos Mortais X, mais uma vez, os realizadores lançaram para o terreno interpretativo, além do entretenimento, uma reflexão sobre a morte. Um dos maiores tabus da humanidade é transformado em espetáculo para as plateias, numa contínua elevação aos extremos. O conceito filosófico aqui é dar valor para a vida no momento do encontro com a morte. A redenção, para aqueles que conseguem se salvar, é alcançada após a punição. Os vitimados: a escória da sociedade. Pessoas que deixaram de lado as regras de convivência e, consequentemente, qualquer rastro de ética e moral (não confundir com moralismo). Como Deus, Jigsaw testa as habilidades socioemocionais daqueles que caem em suas armadilhas, num espetáculo de horror e morte onde dificilmente os coitados conseguem escapar.

Sob a direção de Kevin Greutert, responsável por Jogos Mortais 6 e Jogos Mortais: O Final, este retorno às origens trouxe Josh Stolberg e Pete Goldfinger como responsáveis pelo roteiro, repleto de citações aos demais filmes do universo. Confesso que apesar de achar os três primeiros capítulos da franquia os mais interessantes, sempre houve um prazer mórbido da minha parte em continuar contemplando as narrativas do legado de John Kramer. Mesmo ruins, eram produções que me deixavam curioso sobre o que mais poderia ser feito depois de se bifurcar tanto dentro de uma cronologia repleta de coincidências. Jogos Mortais X está longe da perfeição, mas convenhamos, é um retorno saudável para um esquema narrativo que há eras já tinha se desgastado mais que os corpos dos personagens colocados para reabilitação pela vítima-algoz interpretada por Tobin Bell. E, como já dito anteriormente, é provável que a saga continue com outras tantas incursões, talvez ainda entre o primeiro e o segundo, ou então, dialogando com os espaços entre as demais sequências. Há ainda muita sujeira neste mundo e Jigsaw, com sua postura de agente controlador da ética nada vigente, deve ter muitas armadilhas para desenvolver. Haja criatividade. E sangue também.

Jogos Mortais X (Jigsaw X – Estados Unidos, 2023.
Direção: Kevin Greutert
Roteiro: Josh Stolberg, Pete Goldfinger
Elenco: Tobin Bell, Shawnee Smith, Synnøve Macody Lund, Joshua Okamoto, Steve Brand, Octavio Hinojosa, Michael Beach, David Alfano, Donagh Gordon, Isan Beomhyun Lee
Duração: 118 Minutos.

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