O humor geneticamente tragicômico do cineasta canadense Denys Arcand concebe uma obra que faz a paródia ao mesmo tempo em que readapta, de modo dramático, esse lugar clássico da literatura cinematográfica a que se denomina “paixão de Cristo”, isto é, sua vida e morte. Movimentando gêneros que se mostram presentes ao longo de sua filmografia, como a comédia e sobretudo a tragédia, o diretor aponta, através da figura emblemática de Jesus Cristo, para assuntos e problemas modernos como a ética, a moral, a farsa da preocupação da indústria cultural com a arte, a saúde pública e o governo, a coerção de poderes oficiais, entre outras muitas camadas que o filme vai desnudando por meio de uma alegoria que se mostra muito profícua enquanto modus operandi do filme.
Encabeçado por Daniel (Lothaire Bluteau), um grupo de atores talentosos e vanguardistas do Quebec é contratado pelo padre Padre Leclerc (Gilles Pelletier) para encenar uma releitura de A Paixão de Cristo – peça tradicional e que é apresentada todos os anos. Na ocasião em que é montada a peça, a mesma recebe elogio de todos, mas é duramente criticada pelo padre e pela Igreja, que não aprovam a apresentação do texto modernizado. No roteiro de Daniel, Maria é mãe solteira e José, um soldado romano que a abandona. Em uma das montagens, a polícia, a mando da Igreja Católica Romana, intervém, destruindo a peça e a proibindo de vez, uma vez que a interpretação que Daniel faz da Bíblia fere preceitos e dogmas. Propositalmente, a vida de Jesus confunde-se com a de Daniel, e então o personagem aparenta reviver, no mundo moderno, o drama de Cristo, sendo ao mesmo tempo martírio e esperança.
Gosto de muitas coisas neste filme, mas sobretudo a maneira sutil de trabalhar com a alegoria, que nunca mostra demais, pelo contrário, oferece pistas para uma interpretação espelhada entre a história que vemos na tela e a fábula bíblica numa metalinguagem bem boa, fora do comum. É surpreendente que, a dado momento, percebamos que Jesus de Nazaré dá lugar a esse Jesus de Montreal, que é o personagem Daniel. A montagem opera como núcleo essencial do longa, até que se forme um retrato completo da trajetória de Cristo. Embora eu cite adiante um punhado de ocorrências que nos fazem travar esse paralelo, o roteiro não oferece essa informação de graça ao público, mas guarda para si até o último instante. O custo dessa alegoria sutil é o ritmo lento, que demora a engatar de vez – isso quando engata, o que pode ser um problema.
Lembre-se que ele parece reunir esse grupo de atores e liderá-los como o Messias fizera com seus apóstolos. De mesmo modo, quão emblemática é aquela cena em que, em desacordo com o modo como é tratada sua namorada num teste para um comercial, ele, irritado, quebra tudo como fizera Jesus no templo ao ver os comerciantes? Mas tudo isso são apenas hipóteses quando não assistimos à derradeira cena final, momento iluminador em que, após a sua morte, seus órgãos são doados para salvar pacientes terminais. Ele dá a vida para salvar o outro. Eu gosto e aprecio essa construção paulatina do personagem principal, que se complexifica por meio da alegoria. O Jesus que observamos em tela é muito mais combativo e reativo e se coloca no papel de um líder rebelde, e isso se deve a Lothaire Bluteau, que entrega uma performance apaixonada e muito bem estudada de seu personagem, com um nível de teatralidade excelente e comovente.
Arcand utiliza desse pretexto para discutir temas caros à sociedade moderna. Não deixa, o cineasta, de criticar duramente o sistema de saúde público do Québec; o poder da Igreja sobre o povo, bem como sua isenção de julgamentos; a indústria cultural, que jamais se preocupou com a liberdade artística, senão com o consumo, venda e interesses financeiros, entre outros pontos que evidenciam na película de Arcand um trabalho que se preocupa com uma determinada expansão do texto e consequentemente profundidade da trama.
É uma tragédia por excelência. Piedade e temor são manipulados a fim de causar um efeito no público. Embora o cômico esteja presente em inúmeras falas, a fita caminha, estruturalmente, rumo ao trágico: a ação do homem é responsável pelo seu declínio e aí quando julgamos imerecido o seu sofrimento, nós nos apiedamos por seu pesar imerecido, comovendo o público em alguma medida, que é o que ocorre aqui intencionalmente, por isso que é ainda melhor, pois o cineasta sabe a respeito do gênero dramático e o trabalha de modo consciente. É, portanto, uma obra formal, amparada num diálogo clássico entre cinema e teatro.
O messias, no filme de Arcand, é um homem que luta para ser artista e obter liberdade para isso, travando verdadeira batalha pelo que acredita. Satírica, irônica e ao mesmo tempo altamente dramática, a obra de Arcand trabalha o tempo inteiro com as paixões do público, sobretudo no final do terceiro ato, quando busca encerrar a sua película com um grande final numa releitura contemporânea da ressurreição de Cristo. Provocativa e criativa, Jésus de Montréal é uma película corajosa, que enfrenta o perigo da falha de um roteiro clichê e produz algo totalmente novo, com marcas autorais potentes e uma modernidade singular no espectro temático e ganha por trazer novidade e vigor a um lugar-comum secularmente conhecido como esse a que se denomina Paixão de Cristo.
Jesus de Montreal (Jésus de Montréal, Canadá, França, 1989)
Direção: Denys Arcand
Roteiro: Denys Arcand
Elenco: Lothaire Bluteau, Catherine Wilkening, Johanne-Marie Tremblay, Rémy Girard, Robert Lepage, Gilles Pelletier, Roy Dupuis, Yves Jacques, Cédric Noël, Denys Arcand
Duração: 118 min.