Obs: Leia, aqui, todo nosso material – quadrinhos e série – sobre Jessica Jones.
Quando Brian Michael Bendis e Michael Gaydos bancaram a série Alias, que tinha como objetivo introduzir em forma de retcon uma nova heroína ao panteão da Marvel Comics mais galgada na realidade, adulta, mas com íntima relação com o universo ao seu redor, o material resultante foi tão bom que a editora criou um selo específico para isso, o Marvel Max. Nascia, assim, em 2001, Jessica Jones, personagem interessantíssima que permaneceu assim, em sua forma mais pura, por 28 brilhantes edições, sendo, ato contínuo, realmente absorvida ao mainstream da editora a partir de The Pulse, mas sem ganhar edições solo desde 2006.
Em 2016, às vésperas do lançamento de sua aguardada série de TV como parte das séries de heróis urbanos da parceria Marvel e Netflix, Bendis e Gaydos se juntaram novamente para um one-shot que apenas deu um gostinho para os fãs dos quadrinhos originais. Mas, com o sucesso da série, a Marvel Comics conseguiu algo espetacular: reuniu os dois de vez, além do capista original David Mack e do colorista original Matt Hollingsworth para mais uma série mensal da heroína, batizada simplesmente de Jessica Jones. Com isso, a esperança era que a qualidade impressionante que havia marcado Alias fosse voltar e a primeira pergunta que os leitores certamente farão é: voltou mesmo?
A resposta, porém, não é tão simples como um “sim” ou um “não”.
Há que se levar em consideração um aspecto importante em primeiro lugar. Quando Bendis e Gaydos criaram a personagem, eles começaram do zero. Não havia bagagem alguma para a detetive particular super-poderosa Jessica Jones. Com a tábula rasa, os dois foram construindo sua mitologia, reunindo-a de forma indelével a Luke Cage e Carols Danvers, a Capitã Marvel. Mas o tempo passou e, como mencionei, Jones passou a fazer parte de um universo maior do que apenas Alias, do que apenas sua agência de detetive particular de uma pessoa só. Na cronologia da editora, ela estava casada com Cage e tinha uma filha com ele, Danielle, além de ter feito parte dos Vingadores e de várias linhas narrativas ao longos dos anos. Portanto, ainda que fosse possível ignorar isso tudo e começar praticamente do zero mais uma vez, a escolha foi pela continuidade. Portanto, a nova série está completamente inserida na cronologia normal da personagem e isso acaba afetando o resultado final se o compararmos com Alias, o que logo de cara seria injusto.
Ainda que os mais puristas possam preferir uma Jessica Jones de volta às raízes, não é isso que Bendis e Gaydos trazem. Mas, por outro lado, a nova publicação mensal é o mais próximo possível do material original, demonstrando os esforços da editora em respeitar o começo da heroína e, claro, seus autores. E o melhor de tudo é que Bendis, apesar de recentemente ter metido os pés pelas mãos em seu trabalho na Marvel Comics, aparentemente tem um amor especial por sua criação, o que acaba gerando uma história interessantíssima e muito bem construída se o leitor aceitar a premissa que essa é a Jessica Jones que vive dentro do universo Marvel comum e que, por isso, precisa se submeter a algumas “regras” maiores, a primeira delas sendo a eliminação dos palavrões e da sexualidade mais, digamos, saliente. Portanto, temos uma Jessica Jones ainda rabugenta, ainda grosseira, ainda senhora de seu nariz, mas não temos alguns aspectos que, confesso, não são exatamente essenciais para sua personalidade, já que a essência não foi alterada.
A história do primeiro arco começa com Jessica Jones sendo libertada da prisão depois de um tempo atrás das grades. Ou seja, há um pulo temporal a partir de Guerras Secretas que Bendis usa justamente para montar sua história que não deixa o leitor em suspense e acaba explicando detalhadamente o que aconteceu. No entanto, nesse meio tempo, Jones some com Danielle, o que enfurece Luke Cage, obviamente e estremece o casamento dos dois. Ao sair da prisão, ela se recusa a devolver a criança e o leitor começa a perceber que há algo muito estranho aí e o arco funciona justamente para resolver essa questão.
Falar mais é abrir a crítica a spoilers. Portanto, pule os demais parágrafos se não quiserem saber o que acontece no arco.
SPOILERS!
A prisão de Jessica Jones e seu distanciamento do mundo dos super-heróis é parte de um elaborado plano criado por Carol Danvers para desencavar uma quadrilha vilanesca anti-super-heróis. Em um movimento muito inteligente, Bendis usa a personagem Alison Greene, que foi a mulher incorreta e violentamente interrogada pela Capitã Marvel em Guerra Civil II, como líder desse grupo, demonstrando, novamente, o perigo de saber o futuro. Afinal, Greene foi levada a ser vilã exatamente pela atitude de Danvers a partir de um cenário hipotético imaginado pelo inumano Ulisses. Se o que Greene planeja é justificável ou não, são outros quinhentos, mas o paradoxo da profecia auto-realizável ganha ares palpáveis e bem elaborados aqui.
FIM DOS SPOILERS!
No entanto, a narrativa principal e misteriosa sobre a prisão de Jones ganha um interessante tempero quando ela, aceitando a investigação de um caso de uma esposa que quer que ela descubra o paradeiro de seu marido, depara-se com uma situação que a faz questionar a própria realidade e que conecta a história diretamente aos eventos pré e pós-Guerras Secretas, com a eliminação do Multiverso Marvel. Parece ser algo exagerado e completamente fora de esquadro em uma história solo de Jessica Jones, mas a grande verdade é que não é. Bendis dá sentido a tudo ao simplificar a questão, colocando Jones em confronto direto com o marido desaparecido em uma sala de interrogatório da delegacia. Eventos macro são transpostos para esse lado mais intimista, em que Jones, mesmo sendo uma super-heroína, é alguém do “lado de fora” de decisões tomadas pelos medalhões de seu universo.
Com isso, o roteirista faz uso de informações tiradas de duas sagas para estabelecer um arco narrativo que não exige conhecimento prévio dessas publicações e que é crível o suficiente para ser algo digerível por quem espera uma Jessica Jones que não poderia de forma alguma – a não ser em um universo paralelo – voltar ao que era antes. Bendis não desfaz sua personagem. Ele apenas a insere ainda mais nos conceitos do universo Marvel, substancialmente mantendo sua essência. Se eu preferiria algo ainda mais intimista e, portanto, desligado dos grandes eventos da editora? Provavelmente sim, mas é muito interessante ver que Bendis sabe trabalhar em grande e pequena escala com a mesma facilidade e usar Jones nesse contexto pareceu-me legítimo e verossimilhante.
Michael Gaydos, na arte, continua usando seu inconfundível estilo “sujo” e com brilhantes transições de quadros que dão uma invejável fluidez narrativa aos textos de Bendis. Sem dúvida alguma, porém, seu desenho combina mais com a versão original de Jessica Jones, com baixa auto-estima, incapaz de interação humana e auto-destrutiva, mas o objetivo era trazer o time original para a nova revista e o esforço valeu a pena. Agora é torcer para que a questão do relacionamento de Jones com Cage, que parece ser o objeto do próximo arco, dê um caráter mais “pé no chão” à história, justificando de verdade os traços do artista.
O primeiro arco de Jessica Jones pode não ser espetacular como os arcos de Alias, mas se o leitor tiver mente aberta o suficiente para aceitar que a heroína não pode mais ser completamente aquilo que era, então encontrará muita diversão de viés adulto aqui. A volta de Bendis e Gaydos é mais do que bem-vinda e, a julgar por esse recomeço, Jones ainda passará por muito sofrimento antes de normalizar sua vida, isso se ela um dia for normalizada.
Jessica Jones: Uncaged! (EUA – 2016/7)
Contendo: Jessica Jones (2016 – ) #1 a #6
Roteiro: Brian Michael Bendis
Arte: Michael Gaydos
Cores: Matt Hollingsworth
Letras: Cory Petit
Capas: David Mack
Editora original: Marvel Comics
Data original de publicação: dezembro de 2016 a maio de 2017
Editora no Brasil: Panini Comics
Data de publicação no Brasil: maio de 2018
Páginas: 132