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Crítica | Jessica Jones: Quebrando a Escuridão, de Lisa Jewell

Revivendo traumas.

por Ritter Fan
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Desde 1967, a Marvel Comics vem quase que ininterruptamente licenciando suas cobiçadas propriedades para as mais variadas editoras com o objetivo de elas serem transformadas em obras literárias, sejam criações originais ou adaptações de arcos dos quadrinhos. Em 2024, duas novas séries foram iniciadas pela Random House Worlds e pela Hyperion Avenue (esta uma divisão da Disney Publishing Worldwide), respectivamente as linhas O Que Aconteceria Se… e Marvel Crime, a primeira com um romance já publicado (sobre o Loki e a Valquíria) e outros dois anunciados (um sobre a Feiticeira Escarlate e o Homem-Aranha e outro sobre o Cavaleiro da Lua e o Venom), tudo em um mesmo ano, e a segunda com apenas um romance já publicado – este sob análise -, sem anúncio oficial de outros pelo momento.

Em Breaking the Dark ou, em minha tradução livre e direta, Quebrando a Escuridão, a consolidada e bem-sucedida autora britânica de romances próprios Lisa Jewell encarregou-se de mergulhar na complexa psicologia de Jessica Jones, personagem concebida por Brian Michael Bendis e Michael Gaydos em Alias, em 2001, e que considero a melhor personagem dos quadrinhos mainstream criada no século XXI. Apesar de ter ganhado uma ótima série própria na Era Marvel-Netflix, não creio que a personagem possa ser considerada muito conhecida por aí por não-leitores de quadrinhos, pelo que é até uma surpresa que a editora tenha decidido começar sua linha Marvel Crime justamente por ela, considerando que, se o objetivo for abordar heróis de rua do Universo Marvel, a escolha inicial mais lógica seria o Demolidor. Mas que bom que alguém assumiu o risco de começar por Jessica Jones! E, mais ainda, que bom que uma escritora de renome e de pegada própria tenha aceitado o convite – e, claro, o pagamento – para embarcar nesse projeto!

Afirmo isso, pois a grande marca de Jessica Jones é que ela é uma mulher substancialmente comum, traumatizada por abusos que sofreu e cujos poderes não passam de variações mais pé no chão, por assim dizer, de superpoderes comuns a uma enorme gama de heróis, como voo e superforça, poderes esses que ela sequer gosta de usar. Ela não se preocupa com sua aparência, é alcoólatra, vive como detetive particular e tem pouca paciência para socialização, preferindo ficar sempre na sua, sem procurar destacar-se no mundo. E, claro, ela não usa nenhum tipo de traje, apenas roupas comuns, descuidadas mesmo e completamente longe de modismos. Jewell, ainda bem, nunca perde essas características de vista e, mais do que isso, constrói uma história que reverbera e trabalha o trauma de Jones sob controle do Homem-Púrpura, de forma que é fácil ler o romance tanto como parte da série de TV quanto dos quadrinhos, ainda que haja mais proximidade com as HQs em razão de diversos pequenos (e um não tão pequeno) detalhes que insere a história mais fortemente nesse universo.

Seja como for, Jewell faz um bom trabalho de contextualização de Jones que eficientemente anda no fio da navalha entre textos expositivos e fluidez narrativa. Diria que quem não conhece nada da protagonista pode ficar com a impressão de que está perdendo alguma coisa, mas, para fins do romance em si, todas as informações necessárias sobre ela são passadas e desenvolvidas pela escritora a contento. Quem conhece Jones provavelmente aproveitará mais a história, mas, ao mesmo tempo, poderá sentir algumas redundâncias aqui e ali. No final das contas, a grande verdade é que, dada a natureza da obra e a tentativa natural de se abraçar um público alvo mais amplo do que apenas aqueles familiarizados com a mitologia da heroína, é natural esse “cabo de guerra” que, vale frisar, Jewell maneja de forma muito competente.

A premissa é simples: Jones é contratada por Amber Randall, uma psicóloga milionária, para investigar seu casal de filhos adolescentes gêmeos que retornaram física e psicologicamente estranhos das férias de verão na Inglaterra, onde mora o pai. A mãe, desconfiando de que possa haver algo relacionado com “habilidades especiais”, escolhe Jones como investigadora e uma primeira análise do caso intriga a heroína, logo levando-a a ficar completamente investida no caso que, como mencionei, relaciona-se com o tipo de controle que ela própria sofrera anos antes. Não é, como se pode notar, nada fora desse mundo, mas é aí que entra o trabalho real de uma escritora experiente como Jewell, pois ela desenvolve essa premissa de maneira inteligente, usando tanto flashbacks para décadas atrás que vão se aproximando do presente na medida em que Jessica Jones se aprofunda em suas investigações, como, também, uma sucessão de acontecimentos ao redor da protagonista que vão dos mais prosaicos, como cuidar do gato do vizinho, até os mais super-heróicos, como tentar salvar uma jovem que ela acreditar estar presa em uma casa. A costura entre passado e presente prende o leitor e o lado psicológico de Jones ajuda na conversa interna dela consigo mesma e, claro, por vias transversas, conosco, além de a autora tecer críticas pertinentes sobre a perniciosidade das redes sociais e dos chamados influenciadores digitais.

Apesar de compreender, em razão da nacionalidade de Jewell, não gosto do fato de o segundo terço da história se passar na Inglaterra, para aonde Jones vai continuar sua incrementalmente complexa investigação. Parece-me uma saída confortável demais para a escritora levar a ação para seu país e, muito sinceramente, alguns personagens, como é o caso de Jessica Jones, simplesmente precisam estar em seu habitat natural, por assim dizer, no caso, claro, as ruas sujas e decadentes de Nova York. Jones, em uma cidade pequena no interior da Inglaterra é um literal peixe fora d’água e pouco da história realmente exige essa travessia do Atlântico, já que o mesmo poderia ser contado deslocando a ação para, por exemplo, os Hamptons ou alguma outra localização próxima do centro pulsante da vida de Jones e outros personagens que gravitam ao seu redor, como Luke Cage, que tem participação modesta na história.

Também não adorei o final ou, mais especificamente, a obrigatória ação que termina de resolver o mistério. Toda a construção na base de queima lenta que Jewell explora, toda a calma em lidar com a origem dos problemas que afetam os gêmeos dá lugar a uma resolução corrida e um tanto quanto decepcionante. E não é o caso de querer capítulos grandiosos repletos de ação super-heroíca, pois isso seria descaracterizar completamente a protagonista. Meu ponto é que a autora acelera demais o passo, o que, ironicamente, retira toda a urgência e sensação de perigo dos momentos finais, especialmente com o dénoument que pesa nas explicações convenientes para amarrar todas as pontas soltas. Quase parece que Jewell ou cansou de escrever sua história ou sofreu intromissões da editoria para reduzir o texto e tornar tudo mais mastigado para os leitores. Eu aposto na segunda opção, mas, provavelmente, nunca saberemos com certeza.

Mas Quebrando a Escuridão é, sem dúvida alguma, uma bela e até ousada estreia da linha Marvel Crime que me deixou curioso pelo que está por vir. Apesar de conseguir imaginar que heróis aparecerão no futuro, gostaria muito que Jessica Jones não fosse esquecida e que ela ganhasse pelo menos mais uma história de detetive preferencialmente passada nas ruas de Nova York. E, claro, não seria nada mal se Lisa Jewell retornasse à personagem.

Jessica Jones: Quebrando a Escuridão (Breaking the Dark – EUA, 2024)
Autoria: Lisa Jewell
Editora: Hyperion Avenue (Disney Publishing Worldwide)
Data de publicação: 02 de julho de 2024
Páginas: 384

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