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Crítica | Jeremias – Alma

A arte de narrar as histórias de uma vida.

por Luiz Santiago
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Depois da merecidíssima recepção calorosa de Pele, que deu à dupla Rafael Calça e Jefferson Costa o Prêmio Jabuti de Histórias em Quadrinhos, em 2019, estava muito claro que o projeto seguinte de Jeremias, na Graphic MSP, estaria entre os títulos mais aguardados pelo público. Em Alma, os autores fazem jus à altíssima conta com que são levados, entregando uma história muito inteligente e cheia de referências à cultura africana e afrobrasileira, trazendo a tiracolo mais uma discussão necessária em nossos dias, especialmente quando falamos de crianças e adolescentes, que ainda reproduzem falas, hábitos e situações do racismo estrutural em nossa sociedade.

O texto desta edição possui uma interessante bifurcação narrativa. De um lado, ele aborda o fato de que, nas atuais férias, a família de Jeremias não irá viajar para o litoral, como como de praxe, porque estão reformando um casarão que comparam, e precisam economizar dinheiro, além de estar na cidade para acompanhar as obras. Do outro lado, explora a capacidade criativa do protagonista, que é um bom leitor, grande ouvinte e promissor escritor de histórias. Ele gosta de O Conde de Monte Cristo e acaba se deparando com uma dúvida sobre ancestralidade, sobre sua genealogia e origem, o que permite ao escritor Rafael Calça trazer à tona um necessário debate sobre o apagamento da cultura, das criações e da relevância negra na História do mundo.

Gosto muito da naturalidade com que o autor concebeu os diálogos entre os familiares e entre os personagens adolescentes, sem aqueles momentos constrangedores que não acrescentam nada ou simplesmente não parecem ser ditos por pessoas com aquele parentesco ou naquela relação social. O dilema de Jeremias, em Alma, é a ausência de histórias impressionantes sobre pessoas negras em sua vida e no mundo em que ele vive. Concomitantemente, ele vê como essa história é suprimida por mentiras racistas e generalizações que, nesse caso, estão por conta do odioso Pierre Valentim, um jovem do bairro que plagia textos para criar “suas” peças de teatro e acaba realizando uma apresentação blackface e totalmente calcada em estereótipos do que ele “imagina” ser a vida e a História de Jeremias.

A presença dos avós, o uso de álbuns de fotografias, a ocorrência de uma “noite griô” numa livraria, e a figura simbólica do adinkra relacionado a ananse ntontan ajudam a melhorar todo o contexto. Adinkra é um dos vários sistemas de escrita africanos, e, segundo os extras da edição, “transmite os valores do povo akan, de Gana e da Costa do Marfim“. Já o símbolo de ananse ntontan é relacionado à criatividade e sabedoria, porque ananse (que também significa “aranha“) é uma entidade ardilosa, que engana predadores perigosos, e se torna “dona de todas as histórias” e também de todos os espaços, pois neles consegue tecer sua teia, se fazer presente, construir sua pequena história. Essa visão está na essência de Alma, que à medida que passamos as páginas, entendemos como um título de múltiplos sentidos, como vários outros exemplos que tivemos nas Graphic MSP.

Há um momento da arte, aqui, que é capaz de deixar qualquer leitor emocionado. É uma das viradas de página mais surpreendentes que temos na série, quando o estilo de Jefferson Costa muda, para que ele consiga transmitir o peso, a importância e a cruel beleza de uma “aventura do passado“, narrada por Tia Nancy (aunt Nancy a corruptela em inglês de anansi), que é uma homenagem à atriz e escritora Elisa Lucinda. Este é um dos pontos mais incríveis de toda a edição e reforça com genialidade a ideia de criação de uma vivência (como uma semente plantada), seja fictícia, seja real. Alma é um quadrinho que nos faz pensar sobre aquilo que contamos de nós, de nossa família, de nossos ancestrais e nosso povo para os indivíduos do presente e do futuro. Uma semente narrativa plantada com muito cuidado que será a fonte imaterial a dar sentido para a criação de novas histórias em tempos vindouros da humanidade. Uma ação, portanto, necessária, por ser a alma daquilo que culturalmente faz parte de nós.

Jeremias – Alma – Brasil, dezembro de 2020
Graphic MSP #29

Roteiro: Rafael Calça
Arte: Jefferson Costa
Cores: Jefferson Costa
Editora: Panini Comics, Graphic MSP, Mauricio de Souza Editora
Páginas: 98

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