Paciência. Tempo para pensar. Cinefilia. Sem estas três coisas o espectador que sair da sessão de Jauja (2014) certamente achará que acabou de ver o filme mais infame de sua vida, e, de certo modo, não estará errado.
O diretor Lisandro Alonso, famoso por seus filmes de “abismo dentro do abismo”, mantém a narrativa deste longa fechada, aparentemente indecifrável e dentro de um formado cinematográfico nada comum em westerns, como tela em 1.33:1, planos contemplativos, muito silêncio, quase ausência absoluta de trilha sonora, soma de surrealismo e fantasia, condensação dos signos dramáticos típicos dos faroestes e mudança de sentido textual do filme justamente em seu desfecho, algo que certamente irá desagradar a maioria dos espectadores.
Em resumo: Jauja não é um filme democrático e exige do espectador que tome as rédeas da obra, interpretando-a e montando sua cadeia de significados à medida que a trama acontece. Não é lícito esperar do roteiro de Lisandro Alonso e Fabian Casas explicações ou linearidade narrativa. O filme fornece os ingredientes para que seja entendido em sua completude mas é preciso — como dito no início da crítica — paciência, tempo para pensar e cinefilia.
Em uma tela quadrada (ou quase), somos inicialmente apresentados a dois personagens do filme, Gunnar Dinesen, interpretado por Viggo Mortensen e Ingeborg, sua filha, interpretada por Viilbjørk Malling Agger. O plano em que os vemos pela primeira vez é fixo, a fotografia com brilho aumentado e a saturação controlada, conjunto que dá a aparência de paz e marasmo juntamente com o barulho do mar, fechando a atmosfera com um toque de nostalgia. Ingeborg (ou Inge) fala que quer um cachorro. Gunnar diz que ela o terá quando eles voltarem para casa. Um momento de ternura se dá entre eles e fecha esse primeiro “ato” o filme, na Dinamarca, de onde Inge e Gunnar partirão para uma viagem. Percebam que logo depois do corte temos a tela negra e o título do filme em vermelho, Jauja, cuja alusão à viagem e à perdição já tinham sido dadas no início da fita. O som do mar e marinheiros gritando são mixados ao som dos pássaros, e então, estamos na Argentina.
A preocupação de Alonso em Jauja foi a fazer com que o espectador mergulhasse em uma viagem entre a realidade e a metáfora juntamente com seus personagens, daí a forma sutil ou completamente simbólica escolhida pelo diretor para guiar o mínimo roteiro. Correndo o enorme risco de não ser entendido ou de o espectador não criar seu arcabouço de significados (o propósito da obra, por sinal), o diretor mostrou uma viagem que acontece sem a vermos (corte + elipse) e estendeu ao máximo uma viagem que sabemos possuir um significado diegético mas que nada desse significado ou desse sentido é visto na tela. Executando a definição de perdição exposta no início, o cineasta faz com que o próprio espectador se perca em seu tempo, lugar e ação ao longo da jornada, colocando-o no mesmo patamar que o personagem de Viggo Mortensen, que sabemos ser capitão e engenheiro em uma expedição de “conquista e exploração do deserto” da Patagônia, Argentina, na década de 1880.
Gunnar e Inge são acompanhados, durante a expedição, por um tenente e um soldado do regimento. O motivo dessa expedição não é certo, mas podemos subtender que está ligado à exploração de ouro ou reconhecimento de território. Percebam que quando inicia a busca por sua filha, Gunnar para em um lugar de extração de minério e conversa com o engenheiro responsável, com quem trabalhava aparentemente a pouco tempo. Tudo é muito sutil ou vago mas ao mesmo tempo tem um sentido amplo se aceitarmos preencher as lacunas propositalmente deixadas pelo roteiro, afinal, parte da nossa viagem é também fazer com que o mapa de imagens que temos diante de nós faça sentido além daquilo que mostram.
E que coisas maravilhosas essas imagens nos mostram! Lisandro Alonso e o fotógrafo Timo Salminen (O Porto) expõem na tela a plástica memorável do mito da Jauja à medida que Gunnar, tal qual Ethan de Rastros de Ódio, percorre em desespero um cenário perigoso e aparentemente inóspito em busca de uma garota sequestrada. No meio do caminho, vemos uma pausa para a fantasia, ou talvez para o inconsciente manifestado: seria a velha dinamarquesa na caverna a própria Inge, envelhecida pela Jauja, onde o tempo passa de forma diferente? Entre um tempo e outro, a saturação das imagens, os filtros suaves sempre que vemos formações rochosas e a belíssima fusão entre personagens e seus figurinos com o espaço geográfico (homem + cultura + natureza) quase hipnotizam o espectador; como um feitiço da terra que todos buscam mas na qual todos se perdem… Por que será?
Percebam que o diretor explora com precisão a profundidade de campo e incorpora nos planos uma cadeia de distanciamento de personagens, fazendo parte da edição dentro do próprio quadro, sugerindo ângulos e alterando planos sem mover a câmera. Mais uma vez, vemos a estética reafirmar o conceito do filme, criando uma busca dentro da busca, fazendo com que nos acostumemos com o insólito, com a mudança de planos, com o contato do personagem junto a um cenário que faz de sua percepção de tempo e do espaço algo novo. Assim, a violência, a presença diminuta dos indígenas (subtendemos que exterminados pelos colonos), a busca pelo ouro e a busca pela própria Inge se perdem no feitiço que a Jauja nos lança, fazendo-nos ver uma beleza sem fim em um cenário que mais cedo ou mais tarde irá nos matar.
Dito isto, resta perguntar: o que buscamos? Essa busca vale a pena? Por que estamos perdidos? O problema é só nosso ou alguém já viveu ou viverá a mesma angústia de querer encontrar algo, encaixar-se, conseguir fazer algo notável por algum lugar e compreender o mundo? Aí entra a mais seca e absoluta elipse do filme, mostrando uma cena do futuro onde uma garota acorda — escolha perfeita para continuidade simbólica –, segue entediada por um tempo até que vai passear com seu cachorro, também angustiado por não entender algo. Ela chega a um lago onde o cão parece se perder e onde joga o soldadinho de chumbo que no passado fora de Ingeborg. Uma fusão entre o lago e uma poça na Patagônia/Jauja do século XIX acontece. Duas meninas protegidas (uma pelo pai, outra pelo castelo) que perdem algo e que se perdem. Dois tempos onde a realidade e o cenário místico se mesclam, como se o lugar onde o castelo está fosse no passado a falésia que vemos nas cenas iniciais após o título do filme.
Jauja é um longa extremamente exigente. Dirigido com precisão milimétrica por Lisandro Alonso e com um roteiro que é mais sugestão o que enredo, a obra parece uma mistura de Rastros de Ódio com El Topo, Piquenique na Montanha Misteriosa e Uma Aventura de Billy the Kid. A história possui símbolos de guia disfarçados (o soldadinho de chumbo e o cão são quase como psicopompos crepusculares da vida de Gunnar, que vira uma espécie de Alice a partir do momento que adentra às maravilhas da Jauja), se constrói sob nosso ponto de vista e termina de forma anticlimática, não fechando o ciclo da fantasia mas jogando-a para o futuro, como se quisesse dizer que aquela terra, mesmo muitas décadas depois, permaneceria uma fábula em si mesma, cercada por mistérios e responsável por desaparecimentos que desencadearão buscas.
Jauja é uma terra onde a procura e a poesia nascem mediante o desconforto. É ao mesmo tempo a terra da felicidade, por sua beleza entorpecente, e da dor do amadurecimento, pelo que causa em quem nela se perde. E por ser poesia, terra, perda, procura, dor e mito que cresce à medida que se reconta, ela continuará vivendo e colocando muitos a perder, não importa em que tempo histórico estejam. Jauja, a terra mítica, é a vida. Jauja, o filme, é uma árvore genealógica dessa terra viva.
Jauja (Argentina, Dinamarca, França, México, EUA, Alemanha, Brasil, Países Baixos, 2014)
Direção: Lisandro Alonso
Roteiro: Lisandro Alonso, Fabian Casas
Elenco: Viggo Mortensen, Ghita Nørby, Viilbjørk Malling Agger, Esteban Bigliardi, Diego Roman, Adrián Fondari, Mariano Arce, Misael Saavedra, Brian Patterson
Duração: 109 min.