Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Já Não Me Sinto Em Casa Nesse Mundo

Crítica | Já Não Me Sinto Em Casa Nesse Mundo

por Ritter Fan
3,2K views

estrelas 3

Lançado no Sundance Film Festival de 2017 e arrebatando o prêmio do júri, Já Não Me Sinto Em Casa Nesse Mundo é a estreia na direção de Macon Blair, mais conhecido como ator (Ruína Azul, Sala Verde e outros). Com o relativo sucesso, o filme foi comprado pelo Netflix e distribuído mundialmente na plataforma digital pouco depois de um mês de sua première mundial.

Apesar da curta duração, o filme indie, na verdade, parece ser dois. Um conta a história de Ruth (Melanie Lynskey), uma assistente de enfermagem que, como o título explicativo deixa bem claro, não se adapta mais ao mundo atual, estando em constante processo de distanciamento de tudo e de todos a partir de sua intolerância com as pequenas transgressões que vê no dia-a-dia, como fumaça de caminhões, gente que joga lixo na rua, outros que derrubam produtos da prateleira de um supermercado e nem mesmo se preocupam em pegar e outros ainda que não limpam as fezes de seus cachorros e assim por diante. A gota d’água e, claro, o momento catalisador do filme, acontece quando, ao voltar para casa, ela se dá conta que fora furtada, que alguém levara seu laptop e o aparelho de jantar herdado de sua avó. Diante da completa inoperância da polícia, aqui encapsulada pelo detetive William Bendix (Gary Anthony Williams), também com seus problemas particulares e que joga a culpa na vítima do crime, Ruth resolve partir para recuperar o que perdeu, arregimentando, no processo, a ajuda de seu estranho vizinho Tony (Elijah Wood), o mesmo que por duas vezes não limpara os dejetos de seu cachorro deixados de presente para ela no gramado em frente à sua casa.

A inadequação de Ruth com o mundo é fascinante e algo que muito provavelmente será relacionável por vários que assistirem ao filme (este que vos escreve especialmente!). Blair, que também escreveu o roteiro, consegue criar uma visão bastante precisa das pessoas que apenas querem fazer o que está certo e esperam o mesmo dos demais. Ao mesmo tempo, ele consegue discutir, com um tom leve e descontraído – mas sempre solene – diversos problemas da sociedade atual, como a culpabilização da vítima de uma violação (o furto é trabalhado de forma a atingir Ruth pela invasão e não pela perda em si dos bens materiais, o que cria um paralelo forte com as agressões físicas sofridas pela mulher, incluindo aí o estupro), o papel da mulher em uma sociedade que parece não lhe dar valor e, não menos importante, o “ser diferente” em um mundo pasteurizado. Esse último aspecto, vale salientar, é mais particularmente desenvolvido pelo personagem de Elijah Wood (que a cada papel que escolhe não nos deixa esquecer que viveu Frodo na trilogia O Senhor dos Anéis), um verdadeiro “bicho do mato” que tem shurikens e nunchakus em casa e mal consegue olhar nos olhos de seu interlocutor, apesar de se mostrar atabalhoadamente valente de forma que ele consegue criar um convincente sidekick para Ruth.

Mas sidekick para o que, exatamente? A resposta a essa pergunta nos leva ao “segundo filme” que mencionei mais acima. Ao investigar o furto, Ruth e Tony começam a trilhar um caminho cada vez mais sombrio e estranho até se envolverem com uma gangue violenta que deseja roubar a mansão do pai de um deles. A partir desse ponto, há uma reviravolta, mas não no sentido Shyamalan da palavra, e sim em tom. De um filme com uma interessantíssima pegada existencial, passamos para outro que de certa forma lembra algo saído da mente de Tarantino, mas só que sem nem de longe o mesmo tipo de brilhantismo. Quando Ruth toma para si a missão de recuperar o que perdeu, ela o faz não para efetivamente ter de volta seus bens, mas sim porque não se conforma com o que aconteceu, ou seja, com o furto em si, claro, mas também com a desídia da polícia. Quando esse “vigilantismo”, porém, descamba para estilo-Cães de Aluguel, Blair perde o fio da meada e entra em uma espécie de normalidade, algo que é tematicamente oposto à premissa de seu filme.

No entanto, Melanie Lynskey é um achado. Com uma carreira que começou com Almas Gêmeas, de Peter Jackson, a atriz é dona de uma invejável, mas de certa forma discreta filmografia. Discreta como sua forma de atuar, especialmente aqui, em Já Não Me Sinto Em Casa Nesse Mundo. É um trabalho minimalista, perfeitamente crível como alguém que realmente não aguenta mais o acúmulo de “pequenos erros” do dia-a-dia, sem que ela precise recorrer a caras e bocas. Sua linguagem corporal, desde os lábios comprimidos de raiva, até os ombros arqueados em uma postura que diz “mais um dia que tenho que aturar” é sensacional e essencial para que o filme realmente funcione. Lynskey é a cola que mantém as duas partes diferentes da obra de Blair com alguma coesão e que torna o filme algo realmente valioso, ainda que longe da perfeição que alguns apregoam.

Já Não Me Sinto Em Casa Nesse Mundo é um pequeno e estranho filme que, mesmo contando duas histórias diferentes e, de certa forma, opostas, consegue dialogar com o espectador por intermédio da protagonista Ruth e da atuação memorável de Lynskey. Não fossem esses elementos, a obra não passaria de uma divertida curiosidade com “o ator que viveu o Frodo”.

Já Não Me Sinto Em Casa Nesse Mundo (I Don’t Feel at Home in This World Anymore, EUA – 2017)
Direção: Macon Blair
Roteiro: Macon Blair
Elenco: Melanie Lynskey,  Elijah Wood, David Yow, Jane Levy, Devon Graye, Christine Woods, Robert Longstreet, Gary Anthony Williams, Lee Eddy, Derek Mears, Jason Manuel Olazabal
Duração: 93 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais