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Crítica | Ivo (2024)

Dançando com a morte, abraçando a eternidade.

por Frederico Franco
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Falar sobre morte é entrar em uma grande encruzilhada. É entrar em contato direto com dilemas éticos, filosóficos, religiosos e assim por diante. Trata-se aqui, talvez, da instância mais irracional da existência humana. Pouco se sabe o que significa morrer. Cientificamente falando, não existem relatos claros e cristalinos do que a morte acarreta ou seu significado perante o trajeto de vida do ser humano. No entanto, por mais que pouco se saiba sobre sua natureza, a morte é uma constante na natureza humana. O acaso nos reserva essa presença ausente. Nunca se sabe se a morte caminha por perto ou se posiciona anos à frente. É inevitável, então, conceber uma vida sem esse fantasma que ronda o cotidiano de todos nós. Entre as indagações mais pertinentes a respeito do tema estão as dúvidas sobre o que há além da morte: para onde vamos depois que nossa consciência se esvai do mundo real? A outra questão diz respeito à nossa transformação post mortem: o que nos tornamos a partir do instante no qual deixamos de existir? Energia? Matéria? Potência? Não existe resposta certa ou exata. Como dito antes, a morte significa, principalmente, uma dinâmica irracional, rodeada de perguntas sem respostas aparentes – claro, sem considerar preceitos religiosos de todos os tipos.

Ivo apresenta uma protagonista homônima que, devido ao seu trabalho, convive diariamente com uma espécie de pulsão de morte: trata-se de uma enfermeira voltada para cuidados paliativos. Seus pacientes, portanto, são pessoas extremamente próximas da morte, muitas vezes estando mais próximas do lado de lá do que de cá. Ivo é quem concede àqueles sob seus cuidados uma transição lenta, suave, em direção ao fim que os espera logo adiante. A protagonista, dessa forma, é um agente cuja principal capacidade é transitar entre vida e morte; lhe é concedido esse poder quase espiritual de conseguir conectar ambas etapas da vida humana. Ivo atua como o barqueiro Caronte, conduzindo aos poucos seus enfermos com sutileza ao mundo dos mortos. É como se nela existisse uma capacidade inata de dançar com a morte. Ivo é uma das poucas pessoas com a habilidade de aprender a difícil coreografia proposta pelo ceifador. Por isso, com devido esmero, a protagonista pega na mão de seus pacientes e, pouco a pouco, ensina-os os principais passos da derradeira dança.

Eu não saberia dizer se Ivo é um retrato sutil de vidas que perdem sua potência ou um relato brutal proposto pela diretora Eva Trobisch. Talvez ambas as esferas sejam contempladas no filme. Ao mesmo tempo que vemos, com extrema intimidade, Ivo lidar com seus pacientes já idosos, a câmera também não deixa nada escapar. O sofrimento alheio e o sentimento de impotência dos enfermos são expostos com certa crueza, um realismo próximo demais dos personagens. A figura de Ivo é central para a atuação do filme nessa linha tênue entre a sutileza e a crueldade. Por mais que seja duro acompanhar pessoas se esvaindo, a protagonista torna essa passagem mais branda, com delicadas notas de humanismo. 

A intimidade construída por Eva Trobisch atinge seu ápice nas cenas que acompanhamos Ivo cuidar de Sol, sua melhor amiga que sofre de Esclerose Lateral Amiotrófica. As interações dramáticas entre as duas despertam o que há de mais positivo numa situação terminal como essa: carinho, companheirismo e afeto. Ao lidar com Sol, a personagem de Minna Wündrich não demonstra fragilidade frente à situação de vida ou morte de sua principal companheira de vida. Principalmente na companhia da amiga Ivo não deixa transparecer qualquer tipo de vulnerabilidade, sendo o lado mais otimista da relação. Enquanto Sol quer descanso, Ivo apresenta novas possibilidades para uma vida digna. A protagonista carrega muito peso em suas costas, mas segue firme, sem aparentar cansaço ou desgaste. Essa dor não compartilhada, contudo, pesa cada vez mais e mais.

A mise en scène adotada por Trobisch é pautada em uma linguagem pouco invasiva, beirando uma invisibilidade em prol de um realismo expressivo. O trabalho da montagem, aqui, é absolutamente impecável, aparecendo apenas quando necessário. Os cortes são sutis, corroborando com a ideia de uma estética pouco agressiva. A edição, em Ivo, conserva o cuidado e a delicadeza dos gestos da personagem principal. Se ela é marcada pelo cuidado e paciência, assim se apresenta a montagem do filme – cuja não intromissão é sua marca registrada. Além disso, ainda pautada pelas características centrais de Ivo, a atuação da câmera é igualmente cautelosa: são poucos e extremamente sutis movimentos, marcados por uma estabilidade quase matemática.

Chegando quase ao final da obra, a morte de Sol se torna o principal elemento dramático apresentado pela diretora. Após o falecimento da amiga, é inevitável a transformação de Ivo: sua faceta mais vulnerável é finalmente explorada. Antes confiante e convicta, a personagem torna-se um ser em frangalhos, processando o luto a partir de uma dor e angústia exposta por meio de opressivos silêncios ou um um choro incontrolável. Em um diálogo anterior, Ivo questiona se, após a morte, a consciência da pessoa ainda é capaz de observar os entes queridos ou pessoas próximas. Sol diz que, se isso for verdade, ela deixará recados para sua melhor amiga. Ao fim da obra, observando o balé das folhas de uma árvore, Ivo parece perceber um recado de Sol; sua amiga, antes presa ao sofrimento do mundo material, agora é livre, transformada completamente em pura energia. Esse instante infinito pode ser definido da seguinte forma por Herman Hesse: Na eternidade, como vês, não há tempo; a eternidade não é mais do que um momento, cuja duração não vai além de um gracejo. O breve momento compartilhado por Ivo e Sol não acaba nunca, sendo gravado para sempre na memória da protagonista e servindo como alento para a livre alma daquela que partiu.

Ivo – Alemanha, 2024
Direção: Eva Trobisch
Roteiro: Eva Trobisch
Elenco: Minna Wündrich, Pia Herzegger, Lukas Turtur, Lili Lacher, Johann Campean; Pierre Siegenthaler, Leopold von Verschuer, Wolfgang Rüter, Joanne Gläsel, Samy Challah
Duração: 104 min.

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