O começo deste Ivan Fiódorovitch Chponka e Sua Titia, do grande Nikolai Gógol, nos dá uma explícita ideia do que vai acontecer ao final do conto — ou seja, uma condição narrativa que não guarda nenhum segredo sobre ser um “relato incompleto” de alguém para o narrador de abertura, criando uma moldura para a trama como todo — mas, mesmo assim, é difícil não ficar um tantinho decepcionado com essa escolha, quando chega o devido momento.
Lançado em 1832, integrando o livro Serões Numa Fazenda Perto de Dikanka (lançado aqui no Brasil com o título de Noites na Granja ao Pé de Dikanka), este conto é de fato uma história inacabada de Gógol, que para “justificar” esse tipo de condição do texto, usou de um bom recurso literário para dar conta da falta de um encerramento oficial. Tanto esse ponto de partida quanto o desenvolvimento da obra são realmente muito bons. Penso, porém, que justamente pela qualidade da obra é que o anunciado final aberto incomode mais do que deveria.
O protagonista da trama é um jovem muito tímido, disciplinado e muito focado em todo o tipo de tarefa que cai em suas mãos, algo que o autor explora de modo amplo, desde as raízes desse comportamento, na infância de Ivan Fiódorovitch, até o grande divisor de águas em sua vida, aos 37 anos. A jornada do personagem é uma mescla de situações engraçadas com outras um tantinho amargas ou quase trágicas, que o leitor entende como traumas de infância e adolescência que moldam alguém com medo de grandes compromissos. Ivan é, no todo, um homem de mentalidade simples, pouca inteligência e grande admiração por tudo o que é contemplativo.
Gógol ergue de forma quase cínica essa percepção de mundo de Ivan Fiódorovitch e, mais para o fim do conto, nos faz perceber melhor a aura infantilizada que o cerca, quase um andamento de vida equivalente à castração ou emasculização, tirando de Ivan Fiódorovitch todo o desejo e deixando apenas a contemplação boba do mundo — a cena de “conversa” dele com sua possível pretendente é mais dolorosa do que engraçada. por exemplo. O moço é visto “como uma criança” pela titia (que repete “ele é só uma criança!” diversas vezes no decorrer do conto), apesar de já ter passado dos 30 anos, e não faz nada para contestar ou ensaiar algum incômodo diante disso. As coisas ficam realmente complicadas para ele quando a titia o confronta com a ideia do casamento.
Há algo entre o cômico e o medonho na reta final dessa história, com uma fantástica e simbólica sequência de pesadelo (me lembrou certas nuances de O Nariz) e uma não-continuação anunciada que, a meu ver, atrapalha o conto. Eu entendo até a possível dificuldade de o autor terminar a trama. O que ele faria? Mandaria Ivan Fiódorovitch para a Sibéria? Ele voltaria à ativa, no Exército, apenas para fugir do casamento e da personalidade forte e mandona da titia? O fato é que mesmo considerando esses aspectos, fico imaginando como a ironia, o humor ácido e a forma de trabalhar uma porção de questões sociais atreladas a tormentos pessoais que Gógol tão bem fazia, se juntariam aqui para dar um encerramento de outro à saga do pobre Ivan Fiódorovitch. Se serve de consolo, porém, um possível final é algo que conseguimos perfeitamente suspeitar nesse caso, mesmo não estando nos planos do autor.
Ivan Fiódorovitch Chponka e Sua Titia (Ivan Fyodorovich Shponka i yevo tyotushka / Иван Фёдорович Шпонька и его тётушка) — Rússia, 1832
Autor: Nikolai Gógol
Publicação original: Serões Numa Fazenda Perto de Dikanka (Noites na Granja ao pé de Dikanka)
Em: Antologia do Humor Russo (Editora 34, 2018)
Tradução: Moissei Mountian, Daniela Mountian
30 páginas