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Crítica | Irracional (2024)

Uma cilada para Muncie Daniels.

por Ritter Fan
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Um de meus tropos narrativos favoritos para obras audiovisuais dramáticas e/ou de ação é o personagem “acusado de um crime que não cometeu” que ganhou uma de suas melhores utilizações em O Fugitivo, remake cinematográfico da célebre série homônima dos anos 60, mas que já teve uma infinidade de variações ao longo das décadas e que, como a viagem no tempo na ficção científica, nunca está muito longe do radar dos mais variados tipos de produções. O mais recente exemplar do uso desse gatilho é Irracional, minissérie original em oito episódios criada por Stephen Belber que serve de palco para Colman Domingo mostrar suas qualidades dramáticas, sem deixar de lado sua característica construção de personagens que são tão sofisticados quanto empertigados.

Na série, Domingo vive Muncie Daniels, um comentarista da CNN que há muito deixou de lado tanto sua família quanto sua comunidade para construir uma próspera carreira. Durante um fim de semana em uma cabana nas montanhas Pocono, na Pensilvânia, ele se depara com um corpo em pedaços em uma sauna de uma cabana vizinha, é perseguido por dois assassinos, mata um deles e, quando finalmente consegue retornar para a civilização, conta tudo – ou quase – para a polícia que, porém, não encontra nenhum sinal do que ele disse. No entanto, não demora para ele se ver embrenhado em uma trama em que ele passa a ser o culpado pelo referido assassinato que, como ele descobre depois, foi de um líder de um grupo supremacista branco, tendo que, então, investigar sozinho o ocorrido para limpar seu nome.

Como toda a história com essa premissa, especialmente quando ela vem na forma de uma série ou minissérie, a estrutura lembra a de videogames, em que cada descoberta leva a uma nova fase que leva então a novas descobertas e novas fases e assim por diante, com direito a chefes de fase incrementalmente mais difíceis de serem derrotados. Não é diferente em Irracional e, mesmo que as atitudes do protagonista por várias vezes façam o espectador revirar os olhos de incredulidade, tenho para mim que o resultado final é muito satisfatório, até porque a corrida contra o tempo empreendida por Daniels, que envolve a polícia, a esposa do supremacista morto, o FBI, assassinos contratados e assim por diante, tem saldo mais do que positivo por ela não ser um fim em si mesma e sim costurada com a narrativa de reconexão do personagem com sua família e amigos, levando-o de volta ao seio da comunidade que ele abandonara.

O uso de conta-gotas para revelar detalhes do passado de Daniels, especialmente o papel de seu pai em sua vida, sua separação da segunda esposa, sua ausência em relação à filha mais velha e adulta e ao seu filho adolescente não é o melhor que a minissérie oferece, pois as informações parecem existir tão somente quando elas são estritamente necessárias para comentar suas escolhas e seus atos ao longo de seu périplo. No entanto, na medida em que ele larga de lado sua atitude egoísta e solitária e parte para pedir ajuda para sua ex-esposa Elena (Marsha Stephanie Blake), de seu filho Demetrius (Thaddeus J. Mixson) e de sua filha Kallie (Gabrielle Graham), com o bônus do amigo de longa data Isaiah (Stephen McKinley Henderson) e até do agente do FBI porto-riquenho Franco Quiñones (John Ortiz), a série ganha complexidade dramática e um elenco de qualidade para gravitar ao redor de um Colman Domingo inspirado, que consegue ser ao mesmo tempo durão e frágil, estúpido e inteligente, bem do jeito que se espera de protagonistas se arriscando bem mais do que o humanamente aceitável para livrar-se de acusações impossíveis contra ele.

Chega um ponto da minissérie, quando a desconfiança sobre o grupo supremacista branco de que a vítima era líder esfria, que os roteiros começam a oferecer explicações e contextos demais, em um didatismo desnecessariamente exacerbado que infelizmente tem sido a marca de muitos filmes e séries por aí. Falando de maneira geral, é inegável que o espectador tem sido tratado com um preocupante e crescente viés paternalista que vem cada vez mais eliminando sutilezas e a necessidade de se ler entre as linhas, de se exercitar a capacidade interpretativa, mesmo que ela chegue a conclusões equivocadas. Irracional não é o pior exemplar dessa tendência – nem de longe! -, mas muito mais diálogos do que o necessário na série existem única e exclusivamente para pegar na mão da audiência e explicar como é que se atravessa a rua, algo que pode ser visto nas conversas travadas entre Muncie e Franco e, depois, entre Muncie e os membros de sua família. Até mesmo as atitudes – racionais ou irracionais – do protagonista ganham “explicações”, como quando ele atira para o alto na rua onde a cunhada de Muncie mora.

No entanto, Irracional consegue sobreviver aos seus problemas porque a minissérie não depende exclusivamente do foco central de sua narrativa para funcionar. Aliás, é justamente ao trabalhar Muncie Daniels não apenas como um hesitante herói, mas sim como uma alma profundamente contraditória que se desvencilhou de seu passado para não exatamente conseguir se encaixar no presente, que a criação de Belber funciona, com a atuação sempre magnética de Colman Domingo ajudando muito nesse processo, claro. Irracional chama atenção pela premissa, mas prende mesmo pelo desenvolvimento de seu protagonista e daqueles que o orbitam.

Irracional (The Madness – EUA, 28 de novembro de 2024)
Criação: Stephen Belber
Direção: Clément Virgo, Jessica Lowrey, Quyen Tran
Roteiro: Stephen Belber, V. J. Boyd, Obehi Janice, Dana Kitchens, Maurice Williams, Liz Ellis, Katie Swain, Felicia Hilario
Elenco: Colman Domingo, Marsha Stephanie Blake, John Ortiz, Tamsin Topolski, Thaddeus J. Mixson, Gabrielle Graham, Bradley Whitford, Alison Wright, Deon Cole, Stephen McKinley Henderson, Tamsin Topolski
Duração: 391 min. (oito episódios)

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