Ela está espalhada por várias partes de nosso território. Além das bibliotecas e livros digitais, Iracema voou na letra de Chico Buarque, é uma estátua da praia de Iracema, de 1996, tornou-se também um monumento na Lagoa de Messejana, no Ceará, além de ter sido tema de filmes brasileiros e pinturas, em especial, as obras de José Maria de Medeiros (1884) e Antônio Parreras (1909). A Virgem dos lábios de Mel, marco do Romantismo Brasileiro em prosa do século XIX é uma personagem bastante popular. Na biografia de José de Alencar, Luís Viana conta um interessante caso ocorrido num programa de rádio da década de 1930, evento com participação de Rachel de Queiroz. Ela revelou que durante algumas perguntas ao auditório, ninguém sabia quem era a “moça com olhos de ressaca”, a nossa suntuosa Capitu, de Dom Casmurro, de Machado de Assis. No entanto, quando questionados sobre a Virgem dos Lábios de Mel, a resposta veio em tom uníssono: Iracema! Popular, sim. Grandiosa? Também.
Marco do indianismo romântico, Iracema é um dos romances mais conhecidos e importantes da carreira de José de Alencar, escritor que desenvolveu uma série de atividades diferentes em sua jornada no século XIX, tendo atuado no campo da política, do jornalismo e do teatro. Publicado em 1865, a história onde o título é um anagrama de “América” nos apresenta a saga da personagem feminina, uma mulher que precisa enfrentar os paradigmas culturais de sua época, em especial, a hostilidade entre os indígenas e os colonizadores, para conseguir consumar o amor com Martin, um homem branco, algo proibido, haja vista a situação do contexto histórico em questão. O escritor, no correr das páginas, traça uma explicação para as origens de sua terra natal, o Ceará, num “épico” que aborda um dos maiores conflitos românticos: o amor proibido.
Aqui, temos Iracema, a virgem dos lábios de mel, filha do pajé Araquém, jovem que guardava o segredo de jurema, uma bebida mágica utilizada nos rituais religiosos de sua aldeia. Ela é prometida ao deus Tupã, por isso, não pode se entregar ao homem que tanto anseia, o mencionado Martin, guerreiro branco, “amigo” dos potiguaras, os habitantes do litoral do território brasileiro ainda em formação, um combustível adicional para os conflitos, afinal, a tribo é adversária dos tabajaras, grupo de pertencimento de Iracema. Por meio de sua prosa poetizada, José de Alencar narra uma história de heroísmo, focada nos encontros e desencontros entre civilização e natureza, onde a passagem do tempo é contemplada pela brisa, pelas estações, bem como pelo direcionamento das luas.
Situada no começo do século XVII, Iracema é uma jornada que emana tensões, pois reflete a dominação espanhola no território português, destacando a força da união entre as coroas, a conhecida União Ibérica, com hierarquia da dinastia castelhana no bojo das colônias ultramarinas de Portugal. No desenvolvimento que transcende a mera história de amor proibido, o romance vai além da questão dos conflitos em torno da renúncia, numa abordagem simbólica dos relacionamentos humanos ao longo do processo de formação de nosso povo multicultural. Da união de Iracema e Martin, teremos Moacir, o primeiro cearense, o filho da dor. Para fazer o que tinha interesse, a jovem e bela índia corrompe os seus códigos, tendo no encontro com a morte um destino já traçado, pois sabia que diante da entrega ao colonizador, morreria como consequência inevitável, delineando os elementos da cartilha romântica.
Em Iracema, José de Alencar retoma os cronistas do descobrimento e seus detalhismo em relação ao processo de descrição do território “achado”, dando novos significados aos textos documentais da Literatura de Informação. Mergulhado numa era de busca por progresso e transformação do Novo Mundo, o romance foi escrito e publicado no contexto da extinção do tráfico negreiro e da sustentação da ideologia progressista, dominação da natureza, etc. Repleto de figuras de linguagem, o exuberante romance traz ao leitor contemporâneo uma exposição dos constantes choques culturais que marcaram a nossa história e, ainda hoje, salvaguardadas as devidas proporções, ganham ecos, basta ver a conflituosa relação entre indígenas e garimpeiros, bem como as grandes empresas do agronegócio, um combate que envolve sangue e opressão.
Iracema (Brasil, 1865)
Autor: José de Alencar
Editora: Ática – Série Princípios.
Páginas: 184.