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Crítica | Inverno de Sangue em Veneza

Não olhe agora...

por Ritter Fan
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O britânico Nicolas Roeg tem pouquíssimos longas-metragens em sua carreira, mas diversos são marcantes, especialmente em sua primeira década de trabalho em que ele colocou nas telonas A Longa Caminhada, Inverno de Sangue em Veneza e O Homem que Caiu na Terra. Essa trinca de filmes bem diferentes, uma jornada de amadurecimento, um horror psicológico e uma ficção científica contemplativa, tem como característica em comum uma ambientação que também se torna um importante personagem.

Se o outback australiano cria os desafios para o jovem britânico que lá se perde em A Longa Caminhada, o meio-oeste surreal americano serve de pano de fundo orgânico para a construção do império tecnológico do alienígena que vem para cá tentar salvar seu planeta em O Homem que Caiu na Terra. Em Inverno de Sangue em Veneza (o título brasileiro exageradamente dramático – especialmente em contraste com o discreto original, Don’t Look Now ou Não Olhe Agora, é em razão do título italiano A Venezia… un Dicembre Rosso Shocking) – o cineasta eleva o uso da ambientação à enésima potência, transformando os becos vazios, escuros, sujos e úmidos de uma Veneza aproximando-se do inverno em elemento essencial de construção de tensão e de uma atmosfera que oprime pela claustrofobia e confunde pelo labirinto que é formado.

A história, adaptada a partir de conto de Daphne du Maurier, se passa alguns meses depois que o casal britânico Laura (Julie Christie) e John Baxter (Donald Sutherland) perdeu a filha mais nova Christine (Sharon Williams) em um afogamento acidental, levando-o a se mudar para a cidade italiana, mas deixando o filho mais velho, Johnny (Nicholas Salter) em um internato na Inglaterra. John trabalha em restauração de igrejas para o Bispo Barbarrigo (Massimo Serato) que será em breve o anfitrião do casal em razão do fechamento dos hotéis da cidade em razão da época do ano. É nesse curto intervalo em que o turismo de Veneza desaparece e a cidade entra em uma bem molhada hibernação, que os estranhíssimos eventos do longa se desenrolam, com a conexão com a Igreja Católica e a restauração em que John trabalha oferecendo os ecos religiosos que permeiam a narrativa.

O estopim é quando John e Laura, ao almoçarem em um restaurante, conhecem duas irmãs de mais idade, Heather (Hilary Mason) e Wendy (Clelia Matania), a primeira cega, mas, ao que tudo indica, com poderes psíquicos, já que ela é capaz de ver a falecida Christine e dizer que a menina está “feliz entre os pais”, o que imediatamente encanta Laura, sofrendo de forma mais aguda com o luto da perda. John é mais cético, apesar de Heather dizer que ele também tem dons especiais que ele se recusa a enxergar. Em meio a essa dúvida plantada sobre as habilidades de Heather e a vontade de Laura de acreditar em qualquer coisa que a acalente, John tem visões – será que são visões? – de uma criança com roupa vermelha muito parecida com a capa que sua filha estava usando ao morrer e há, como pano de fundo, menções a um serial killer à solta na cidade.

Pode parecer muita coisa, mas Roeg sabe o que faz ao trabalhar uma Veneza gótica cuja frieza somos capazes de sentir através da tela, com uma paleta de cores exsanguinada, por assim dizer, cortesia da fotografia de Anthony B. Richmond (O Mistério de Candyman), que é pontilhada por explosões de vermelho que fazem a “temperatura” aumentar quase que instantaneamente. O uso de flasbacks e flashforwards é outro artificio genial para lidar com a presciência – ou não – tanto de Heather quanto de John, assim como o uso de truques óticos que vão desde a assustadora “mancha de sangue” no slide do preâmbulo, até os extremos close-ups nos olhos mortos da senhora que diz ser psíquica, além da montagem quase impressionista de  Graeme Clifford (The Rocky Horror Picture Show) que desafia até mesmo a linearidade dos acontecimentos. Tudo funciona na direção de desconcertar e confundir o espectador, fazendo-o duvidar de tudo o que Roeg coloca em tela, o que amplifica sobremaneira a impressão de confinamento, de falta de saída para aquele casal sofrendo pela morte da filha.

Contando com uma longa, quase explícita, mas muito elegante e potente cena de sexo entre o casal que marcou a década pelo quanto ela desafia os limites do padrão setentista em filmes mainstream e com um final absolutamente aterrador e inesquecível, Inverno de Sangue em Veneza, que foi lançado “em dupla” com o tematicamente semelhante O Homem de Palha, amealhou grande sucesso na época e ajudou a construir o que podemos chamar de “horror psicológico moderno” em que todos os elementos audiovisuais convergem para um estudo de personagens fascinante, um verdadeiro mergulho em mentes profundamente traumatizadas por uma tragédia.

Inverno de Sangue em Veneza (Don’t Look Now – Reino Unido/Itália, 1973)
Direção: Nicolas Roeg
Roteiro: Allan Scott, Chris Bryant (baseado em conto de Daphne Du Maurier)
Elenco: Julie Christie, Donald Sutherland, Hilary Mason, Clelia Matania, Massimo Serato, Renato Scarpa, Giorgio Trestini, Leopoldo Trieste, David Tree, Ann Rye, Nicholas Salter, Sharon Williams, Bruno Cattaneo
Duração: 110 min.

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