Empreendedora ambiciosamente incompreendida? Certamente, este é mais um daqueles casos que, enquanto mais se conhece, mais absurdo fica. Sendo o choque inevitável, se perguntar como alguém caiu no papo de Anna Sorokin é só o começo, quando a pergunta deveria ser: como ela fez isso? Tema de episódios documentais como em Generation Hustle da HBO, o infame caso, mais conhecida pelo nome de Anna Delvey, é centro da nova minissérie da Netflix desenvolvida por Shonda Rhimes.
Tendo já aparecido no programa 20/20 da ABC, a história da mulher que de 2013 a 2017 fingiu ser uma herdeira alemã com fundo fiduciário de quase US$ 70 milhões, enquanto no caminho foi responsável por vários atos fraudulentos contra bancos, hotéis e alta sociedade de Nova York a medida que prometia estar criando um revolucionário negócio de arte Soho House em Manhattan, se tornou notória após a publicação de um artigo escrito pela jornalista Jessica Pressler para o New York Time Magazine em 2018, material esse que serviu como principal fonte para a dramatização da longa e cansativa atração limitada da Shondaland.
Presa em 2019, Sorokin foi sentenciada de 4 a 12 anos de prisão. Em 2021 foi solta em liberdade condicional por bom comportamento, mas pouco depois foi detida pela Imigração e Alfândega dos EUA (ICE) onde segue desde então diante do vencimento do seu visto e ação movida para ser deportada. Além de ser paga pela Netflix por atuar como consultora de Inventing Anna — usando o dinheiro para pagar os calotes que levaram a sua condenação —, dar entrevista ao Insider sobre sua experiência enquanto encarcerada, e agora, estar trabalhando no desenvolvimento de uma série documental, a história de Delvey parece estar em constante ascensão e atraindo holofotes de todos os lados para retratar seus atos antes e depois em todos os formatos possíveis. Seria Anna Delvey um fenômeno inevitável?
E o formato em questão é o esboçado por Rhimes em mais uma de suas criações que emplacam, agora tendo em mente o desafio de abordar essa história numa minissérie. A abordagem escolhida foi através da ótica jornalística, discorrendo a narrativa na corrida de Vivian Kent (Anna Chlumsky) como a versão fictícia de Pressler em sua investigação insana sobre Delvey, aqui vivida por Julia Garner. Passear por essa trajetória polêmica não seria fácil, e sabendo disso, o que Rhimes faz nesse programa é cutucar todos os pontos possíveis de dúvida e convencimento que a publicação de Pressler pode ter causado aos leitores acerca de Sorokin, mesma pessoa que numa entrevista afirmou não estar arrependida do que fez, e mais adiante, falar que era incompreendida no negócio legítimo que estava construindo.
“Baseada em uma história real, exceto pelas partes totalmente inventadas” é o aviso deixado em cada um dos nove episódios, lembrando que mais absurdos foram incrementados nessa história absurda que requer paciência para encarar. Seguir pelo viés jornalístico foi uma das decisões mais acertadas do show, por buscar uma análise de personalidade que causou furor, e fazer ao contrário, deixar a perspectiva de Anna guiar essa diegese, seria instigante e controverso, fazendo o resultado cair em lugares de glamourização. Mas para um programa que quer ser fascinante ao trazer uma história descabida, Inventando Anna sofre para se mostrar interessante, ainda que a audiência saiba pouco sobre a história, Rhimes não consegue empolgar na dinâmica jornalística genérica criada para efeitos dramáticos, outrora cômicos e de características com personalidades metódicas — tinha como ser mais calculadamente irritante Vivian e os colegas jornalistas conversando ? — enquanto seguimos para interrogação contínua de chegar ao desfecho dessa narrativa.
Para movimentar essa roda, felizmente Chlumsky domina em seu papel como uma jornalista que busca reestruturar a carreira depois de uma publicação polêmica na fictícia Manhattan Magazine. Assim como Pressler durante seu processo de escrita, Vivian está grávida quando encontra a protagonista de sua próxima reportagem, e que servirá para dar o salto pretendido. Claro que atitudes convenientemente óbvias foram impressas na personalidade de Vivian a fim de encorpar o tom melodramático da atração, mas quando Inventing Anna não consegue encontrar um ritmo favorável para sua abordagem repleta de informações e narrativa enfadonha, a obsessão de Kent pro Anna se faz o gás necessário para um relato que termina repetidamente soando monótono, nessa linha que quer se vender como uma corrida intensa de investigação.
Embora falhe em estabelecer uma cadência, a minissérie recupera a chance de decolar a narrativa ao incluir outros pontos de vistas que são imprescindíveis para tanger todos os crimes de Anna e o momento de sua prisão. É quando entram Neff (Alexis Floyd), funcionária de um luxuoso hotel que Anna passou a frequentar, possibilitando uma forte amizade entre as duas; Rachel Williams (Katie Lowes) antiga escritora da revista Vanity Fair que foi vítima de Anna e Kace (Laverne Cox) personal trainer e coach que também teve envolvimento com Delvey. Essas três figuras convergem em um dos melhores arcos na dramatização, que diferente do que foi descrito no artigo, formavam um grupo inseparável de amigas, mas participaram do extenso relato realizado por Pressler.
E Rhimes foi quase inteiramente fiel ao material fonte, e o que adicionou só faz parecer demais para uma adaptação exaustiva em sua execução que sobressaia graças a força do elenco, o que resta o último reconhecimento para a talentosa Julia Garner em mais um papel marcante em sua carreira. Excepcionalmente premiada duas vezes no Emmy como Melhor Atriz Coadjuvante em série dramática pela inigualável Ruth Langmore, Garner é certeira em toda sua aparição na pele de Sorokin, que é apresentada no decorrer da investigação de Vivian, e vai roubando a cena em cada look de luxo, peruca desgrenhada, unindo a sua performance o peculiar sotaque meio russo, alemão e europeu que que aprendeu sobre a Anna original. Depois, uma prótese dentária e enchimento no bumbum completavam os últimos detalhes que caracterizavam a figura polêmica. Exigente, desconcertante, persuasiva, dissimulada, que sabia exatamente o que e como atingir — exemplos dos pequenos momentos desconfortáveis entre Anna e Vivian —, formavam a personalidade hábil de alguém que sabia entrar e sair do personagem para obter seus objetivos.
Mesmo não compondo umas das mais empolgantes abordagens ou que não consiga ir muito além da sensação da trivialidade, Inventing Anna faz jus ao seu destaque pelas performances que a integram.
Inventando Anna (Inventing Anna – EUA, 2022)
Criação: Shonda Rhimes
Direção: David Frankel, Ellen Kuras, Nzingha Stewart, Tom Verica, Daisy von Scherler Mayer
Roteiro: Shonda Rhimes, Nicholas Nardini, Abby Ajayi, Jess Brownell, Matt Byrne, Juan Carlos Fernandez
Elenco: Anna Chlumsky, Julia Garner, Arian Moayed, Alexis Floyd, Katie Lowes, Laverne Cox, Anders Holm, Anna Deavere Smith, Jeff Perry, Tim Guinee, Terry Kinney, Rebecca Henderson
Duração: 603 minutos