Invencível é uma série conhecida por sua extrema violência gráfica, principalmente depois que sua adaptação audiovisual levou a obra para uma escala global de público. Mas todo o sangue, tripas e desmembramentos da HQ não chegam perto de um dos acontecimentos no vigésimo volume: Mark sendo estuprado por Anissa. Não é todo dia que vemos heróis sendo sexualmente violentados em quadrinhos, ainda por cima homens. Kirkman se aproveita da questão de procriação Viltrumita para criar um dos momentos mais impactantes e corajosos da série, com a diagramação de Ottley quebrando a cena em pequenos ângulos que deixam a leitura da situação ainda mais perturbadora.
A sequência é tão desconcertante que tive que começar a crítica abordando-a. E o roteiro não cria a situação apenas para choque, desenvolvendo algumas consequências psicológicas e traumáticas para o personagem já neste volume (a raiva misturada com abalo; não querer ser tocado por Eve; e as tremedeiras). Não me lembro como Kirkman desenvolve essa trama do lado de Mark no restante da história, mas é um dos maiores (quiçá o maior) obstáculo dramático de Mark até aqui. Espero que o roteiro saiba lidar com isso de forma sutil e com nuances. Poucas vezes vi obras, seja de qualquer mídia, abordarem uma mulher estuprando um homem, então é sempre um campo ao mesmo tempo interessante e difícil de reproduzir.
Por incrível que pareça, o estupro é “apenas” uma das desgraças que acometem a vida de Mark em Amigos – um título bem irônico para o tipo de história que lemos. O roteiro de Kirkman é praticamente sádico, meio que punindo o protagonista por ter ido atrás de Angstrom em A Guerra em Casa, afinal, o autor sempre gostou de mostrar as consequências para os atos de Mark. Temos uma série de acontecimentos catastróficos para nosso herói, passando por Eve justificadamente descontando suas mágoas nele; Robô dominando o mundo; Mark vendo sua amada perder uma perna; e ainda assistir seu pai fazendo um acordo com o inimigo.
Como já vimos muitas vezes na série, a narrativa tem um escalonamento de ações e situações. Aprecio bastante o sentido às vezes frenético, às vezes sufocante que Kirkman cria com essas histórias exponenciais. Aqui, como disse, é uma sucessão de tragédias para Mark, mas também é a finalização da trajetória vilanesca de Robô/Rex e o início de um dos últimos grandes eventos da série.
Gosto bastante do desenvolvimento antagônico do personagem até aqui, acontecendo de maneira orgânica, progressiva e com sutilezas românticas com Amanda. Não há nada aqui tão profundo quanto os acontecimentos épicos de O Que Está Acontecendo?, onde aprendemos sobre o período do casal em Flaxan, mas temos um desfecho (temporário) apropriado para o relacionamento conturbado dos dois. Também gosto do desenvolvimento narrativo do tipo de ameaça que Rex propõe, mais sagaz, metódica e até ideológica do que vimos na série e suas infinitas porradarias, inclusive aplaudindo a certa subversão que Kirkman faz na reta final cadenciada do volume. Não vemos um grande conflito, mas uma vitória fria e calculada, com acordos e politicagem, até de certa forma anticlimática do mais novo Cérebro que quer dominar o mundo.
Não temos nada de amizade em Amigos. Cheio de traições e algumas das cenas mais perturbadoras de uma série conhecida por cenas perturbadoras, o vigésimo volume de Invencível é uma surra emocional para Mark, que, mais uma vez, paga caro por seus erros – eu honestamente não me lembrava do quão falho e humano era o protagonista e a representação dramática do autor. Ainda assim, o herói ainda encontra ternura no nascimento do seu filho e na divertida reconciliação com Eve, num dos momentos mais fofos desse casal cheio de cicatrizes.
Invencível – Vol. 20: Amigos (Invincible – Vol. 20: Friends) – EUA, 2014
Contendo: Invencível #109 a 114
Roteiro: Robert Kirkman
Arte: Ryan Ottley
Colorista: John Rauch, Cliff Rathburn
Letras: Rus Wooton
Editora original: Image Comics
Páginas: 193
