Obs: Leia a crítica da saga aqui e dos demais tie-ins aqui.
O que são os tie-ins: Em Guerras Secretas, saga de 2015, o Doutor Destino – agora Deus Destino – recriou o mundo ou, como agora é conhecido, Mundo Bélico, a seu bel-prazer, dividindo-o em baronatos, cada um normalmente refletindo de alguma forma um evento ou uma saga passada da Marvel Comics. Com isso, a editora, que, durante o evento, cancelou suas edições regulares, trabalhou como minisséries – algumas mais auto-contidas que as outras – que davam novo enfoque à situação anterior já conhecida dos leitores, efetivamente criando uma saga formada de mini-sagas, com resultado bastante satisfatório, muitas vezes até superior do que as nove edições que formam o coração de Guerra Secretas.
Crítica
Não esperava o que encontrei em O Despertar de Attilan. Sabia que era um tie-in de Guerras Secretas não baseado em sagas, crossovers e eventos anteriores da editora, mas não esperava muito da minissérie, talvez pelos Inumanos nunca terem me despertado algum tipo de fascínio nos quadrinhos. Sim, há ótimas histórias com os personagens, mas elas são raras. Além disso, o nome de Charles Soule, o roteirista, responsável também pelo excelente tie-in Guerra Civil, de Guerras Secretas, sempre me deixa preocupado, considerando seu fraquíssimo trabalho em A Morte de Wolverine. Assim, foi com muita má vontade que comecei a ler a história, depois de adiá-la algumas vezes.
Mas a grande verdade é que Soule soltou a imaginação aqui e criou uma história de veia noir para os Inumanos que funciona muito bem dentro da mitologia dos personagens, mas trazendo elementos novos e interessantíssimos. A personagem que menos muda é a própria Medusa. Ela continua sendo a rainha (e baronesa) de seu domínio, governando Nova York a partir de Attilan de forma solitária. Depois que o Espírito da Ignição (leia mais sobre essa versão do Espírito da Vingança aqui) líder de uma equipe avançada do grupo rebelde Voz Inaudível é capturado por Thors, ele é levado para a regente que recebe uma ordem diretamente de Deus Destino para extrair todas as informações dele e, com elas, acabar com a insurreição.
Com isso, mergulhamos no fascinante mundo d’A Sala Silenciosa, uma restaurante/boate/bar localizado dentro da Grand Central Station que funciona como nexo de ligação entre as diversas regiões do mundo bélico e que tem regras próprias de convivência, com um grau de tolerância maior para transgressões. O lugar é gerenciado por ninguém menos do que Raio Negro (pré-terrigênese) em um papel gostosamente semelhante ao de Humphrey Bogart em Casablanca. Mas o falante e galante herói, aqui, é, também, o líder da rebelião, usando as facilidade de ir e vir de seu estabelecimento, para criar uma rede anti-Deus Destino. Trabalham com ele versões originais e fascinantes de Karnak, Triton, Matt Murdock, Frank McGee, Hulk Cinza e diversos outros personagens reimaginados e alguns originais da minissérie. Do outro lado, temos a já citada Medusa, Auran, Górgon e a favorita dos leitores Kamala Khan em versão adulta.
O que funciona de verdade é o ar de sofisticação que a história passa casado com uma trama envolvendo tirania, rebeldia e sacrifício que retira a minissérie completamente do lugar-comum. Alguns poderiam dizer que ela não é muito mais do que uma sucessão de clichês costurados juntos e essa definição não está longe de ser verdadeira. No entanto, no lugar dos clichês formarem uma colcha de retalhos mal-ajambrada, o resultado final é fluido, lógico e muito eficiente em criar sua própria mitologia. Aliás, é fascinante notar como Soule amadureceu e nos traz um texto adulto que foge de intermináveis descrições e faz ótimo uso da natureza visual dos quadrinhos para passar sentimentos e criar histórias pregressas. Arriscaria dizer que a minissérie funcionaria muito bem também para quem não conhece os Inumanos e não pode fazer as conexões entre as versões clássicas e as que vemos aqui.
Mas existe um problema. No entanto, é um problema que não sei se é verdadeiramente um problema. Não posso explicar sem spoilers, portanto, os próximos parágrafos só deve ser lido por quem já conhece a história. Para quem não leu, basta dizer que meu problema com a história está localizado em seu finalzinho, que parece ser muito mais a interferência de um deus ex machina do que algo orgânico na narrativa.
Spoilers!
Depois que Raio Negro ganha seus poderes e os usa pela primeira vez obliterando Medusa (sem querer) e a tropa de Thors que estava chegando para capturá-los (querendo), ele parte para destruir Attilan e, em seguida, Deus Destino que, com um estalar de dedos, recomeça a história, reclamando que o resultado é sempre igual, mas desta vez colocando Raio Negro no lugar de Medusa. Confesso que não esperava algo assim e não é algo que se pode tirar diretamente dos acontecimentos da minissérie ou que Deus Destino tenha feito em algum outro tie-in de Guerras Secretas. Por essa razão, arquivei essa escolha narrativa de Soule como um problema.
No entanto, pensando com mais vagar sobre o ocorrido, notei que Raio Negro insiste em chamar Deus Destino de um manipulador, várias vezes mencionando a “máquina” que ele comandaria. Afinal, Attilan tem um transmissor secreto que nem mesmo Medusa conhece, que torna todos os habitantes de seu baronato dóceis e, portanto, mais fáceis de controlar. É como uma espécie de delegação de poderes do ser supremo que criou o Mundo Bélico. Essa noção por si só é interessante, mas ela se torna ainda melhor quando voltamos para o significado de deus ex machina. O termo, que literalmente significa “deus surgido na máquina”, é normalmente associado como um execrável artifício narrativo para, de forma inesperada e inverossímil, encerrar uma história. Mas, aqui, se levarmos em consideração a aplicação literal do termo, ele faz todo sentido e é telegrafado por Raio Negro desde o começo. Deus Destino é o deus que surge na máquina e encerra a história, recomeçando-a de outro jeito para ver se agora o resultado lhe agrada. Bacana, não?
Fim dos spoilers!
A arte de John Timms é outro ponto alto da minissérie. Não só seus traços combinam muito bem com a atmosfera da história, como principalmente suas recriações de personagens clássicos são fascinantes. Infelizmente, Medusa novamente foi esquecida e ele a manteve exatamente – ou quase – como sua versão original. Mas Raio Negro em sua versão civil é um achado, com seu terno emulando a padronagem do uniforme de monarca de Attilan, assim como praticamente todos os demais, notadamente Kamala Khan e Triton. Todas as características que marcam os personagens continuam presentes, mas Timms adiciona sua abordagem mais terrena que os torna ainda melhores que os originais. E isso vale não só para os Inumanos, como também para os outros seres, incluindo a versão G-Man do Espírito da Ignição, o Hulk Cinza, Matt Murdock e Frank McGee.
O Despertar de Attilan é uma minissérie daquelas que dá vontade de permanecer mergulhado no universo alternativo criado por mais tempo. Cinco edições passam rápido demais para que seja possível apreciar todas as nuances da recriação de Soule e Timms. Quem sabe a Marvel não se anima e continua essa história, não é mesmo?
Inumanos: O Despertar de Attilan (Inhumans: Attilan Rising, EUA – 2015)
Contendo: Inhumans: Attilan Rising (2015) #1 a #5
Roteiro: Charles Soule
Arte: John Timms
Arte-final: Roberto Poggi
Cores: Frank D’Armata
Letras: Clayton Cowles
Editora original: Marvel Comics
Data original de publicação: julho a novembro de 2015
Editora no Brasil: Panini Comics
Data de publicação no Brasil: setembro de 2016 (encadernado)
Páginas: 124