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Crítica | Inferno em La Palma

Férias frustradas.

por Ritter Fan
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No ano 2000, a BBC transmitiu o documentário Megatsunami: Onda da Destruição que discutia a possibilidade de o complexo vulcânico Cumbre Vieja, em La Palma, uma das Ilhas Canárias, entrar novamente em erupção, desta vez catastrófica e fazer com que milhões de toneladas de terra caiam subitamente na água, gerando um gigantesco tsunami que afetaria não só o arquipélago, como partes da Europa, África e Américas. Apesar de cientistas terem passado décadas desmentindo o que chegam a afirmar ser uma impossibilidade física, isso não é o suficiente para que os internautas alarmistas de plantão tenham basicamente transformado uma hipótese em fato (na cabeça deles, claro). E, agora, em 2024, eis que chega ao Netflix a produção norueguesa Inferno em La Palma que é, na prática, o sonho molhado desse pessoal que parece esperar ansiosamente uma onda destrutiva multicontinental.

A obra de ficção (vale o negrito aqui) acompanha, em apenas quatro episódios, uma família norueguesa em férias em La Palma às vésperas da tal erupção vulcânica destruidora que gera o tsunami avassalador. Além da família, que é repleta de drama em seu seio, com uma filha adolescente escondendo um segredo sobre sua sexualidade, marido e esposa com um relacionamento tensionado e um filho pequeno autista, há uma doutoranda em hidrologia – também norueguesa – que primeiro detecta que há algo de muito errado prestes a acontecer, mas que seu chefe hesitante não acredita e, claro, seu próprio drama pessoal por ela e o irmão terem perdido os pais no tsunami de 2004, na Ásia. Em outras palavras, a minissérie tem todos os ingredientes dramáticos que se espera de uma obra do subgênero “desastre natural” e se refestela nesses aspectos, empurrando os eventos que todo espectador espera desde o primeiro segundo para o terço final do terceiro episódio e todo o quarto episódio, algo que pode ser visto como o exato oposto do que foi feito no ótimo e angustiante O Impossível, de J.A. Bayona.

Ao privilegiar o lado dramático, a produção faz, sob diversos aspectos, como os filmes de kaiju que privilegiam os núcleos humanos, ou seja, não conseguem desenvolver dramas decentes e, ao mesmo tempo, empurram os monstrengos para o status de participação especial em seus próprios filmes. Afinal, a relação estremecida entre o casal Fredrik e Jennifer (respectivamente Anders Baasmo Christiansen e Ingrid Bolsø Berdal), o desabrochamento da homossexualidade de Sara (Alma Günther) e o autismo de Tobias (Bernard Storm Lager), assim como o trauma passado da hidróloga Marie (Thea Sofie Loch Næss – reparem só nesse nome!) são abordados da maneira mais simplória possível, sem nenhuma tentativa de emprestar um mínimo grau de complexidade. E a maior razão para essa pegada rasa é que a minissérie tenta trabalhar diversos dramas diferentes em um curtíssimo espaço de tempo, tendo que disputar com a natureza nervosa na ilha. Se a produção tivesse focado, por exemplo, na relação de Marie com a mãe e com o padrasto e, claro, com seu crush Charlie (Jenny Evensen), sem dispersar o foco em todas as outras linhas narrativas, seria possível o espectador simpatizar com o conjunto de personagens, mas, do jeito que acabou ficando, eles todos parecem mais arquétipos de personagens do que efetivamente personagens.

Não chegaria a dizer que os roteiros de Lars Gudmestad e Harald Rosenløw-Eeg são completamente inábeis na construção dramática, mas sim, apenas, que eles não se esforçam em criar algo que vá além da mera superfície artificial feita com o objetivo de “atrasar” o grande evento e, claro, economizar o necessário emprego de CGI. E a direção de Kasper Barfoed segue o mesmo caminho, levando para a telinha histórias genéricas como prelúdios de 10 minutos de destruição que, vale dizer, pouco é vista na escala de algo tão catastrófico quanto alardeado aos quatro ventos desde os primeiros segundos da minissérie. Entendo que a obra provavelmente não teve orçamento suficiente para refestelar-se em sequências grandiosas de destruição e morte, mas uma coisa é mostrar um pouco, a conta-gotas, outra bem diferente é quase não mostrar nada, fazendo de um megatsunami algo que não parece muito mais do que uma onda enorme de filme sobre surfe.

Sem trabalhar o lado dramático com profundidade e sem dedicar tempo e dinheiro para os efeitos devastadores da erupção e tsunami, Inferno em La Palma fica naquele meio termo básico, rasteiro e simplório que promete intensidade e grandiosidade, mas entrega morosidade e pequeneza. O inferno dá lugar a um foguinho e a onda à marola. E, entre uma coisa e outra, o drama parece digno de uma novela da Globo. Resta saber, agora, se os cientistas de La Palma precisarão passar mais algumas décadas negando o que a ficção transforma em fato.

Inferno em La Palma (La Palma – Noruega, 12 de dezembro de 2024)
Direção: Kasper Barfoed
Roteiro: Lars Gudmestad, Harald Rosenløw-Eeg
Elenco: Anders Baasmo Christiansen, Ingrid Bolsø Berdal, Alma Günther, Thea Sofie Loch Næss, Bernard Storm Lager, Ólafur Darri Ólafsson, Jorge de Juan, Ruth Lecuona, Armund Harboe, Jenny Evensen, Iselin Shumba Skjæveslandn, Thorbjørn Harr
Duração: 181 min. (quatro episódios)

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