O tempo conhecido como princípio de fuga. O letreiro colocado nas primeiras cenas, que determina o “antes da Pandemia” como recorte temporal, conversa diretamente com a expectativa de um passado que a ficção pode libertar, tanto espiritualmente quanto socialmente. O jogo dos diretores Enock Carvalho e Matheus Farias em Inabitável é implícito demais para desconhecedores da realidade, mas a conexão do espaço captado pela fotografia de Gustavo Pessoa e edição de som de Farias argue uma problemática além da narrativa explícita de uma mãe Marilene (Luciana Souza) procurando a filha Roberta (Eduarda Lemos), extrapolando paulatinamente o implícito.
O início de uma pregação evangélica do fim dos tempos é a síntese do curta, em que o mistério e a resolução se possibilitam no sobrenatural ou da ficção científica, porém na mesma medida o crivo social revela a preocupação de um país que tem uma sociedade preconceituosa com a cultura LGBTQI+. Por isso o suspense agrega a atmosfera ambígua de um realismo temporalmente deslocado, de violência possível e de crença na esperança do Apocalipse, com arrebatamento antes de uma já conhecida pandemia assustadora da Covid-19.
Se o conhecimento presente é de que a casa é segura, que o distanciamento é necessário como medida sanitária de Quarentena, a busca da mãe pela filha Roberta consiste em ser no quarto dela, onde também se questionou a liberdade. Expande aí as incógnitas, em que a descoberta de um objeto luminoso remete em como o mistério não está no sumiço, ou no perigo da filha estar morta pelo Brasil transfóbico, e sim qual reflexão sobre o tempo o espectador traz de experiência da pandemia para a experiência do curta antes do desastre, e qual reflexão ainda pode fazer sobre a realidade as proporções de problemas sociais, mais evidenciados em decorrência da pandemia.
Procurar os parentes dentro de casa, encontrar qual habitação é o anseio, tudo isso circunda a dimensão de encontrar o eu quando se fecha o arco de visão depois de muito tempo dentro de casa. No entanto, isso não se torna filosófico, teórico dentro do curta, porque assim como transição sexual é científica e emocionalmente prática de transformação, é preciso preservar também a transformação física quando se pensa em reflexões. Por isso o curta não se desprende de nenhuma concretude, apenas evidencia agregações ao universo do filme por externalidades sonoras (TV) ou visuais (Recife, PE), naturais (chuva) ou artificiais (brilho do objeto misterioso). Esse é o simbolismo realista que desenvolve o mistério e harmoniza com a fundamentação de uma salvação transcendente dentro da história de Inabitável.
Enfim, Inabitável se baseia na impressão dúbia de como a realidade de uma mãe, de uma filha trans e de um externo real e espiritual existem sem percepções explícitas. Eis a ficção transbordando transversalidade com o tempo e espaço, pois quem assiste acredita, enquanto as personagens transferem seus corpos para a luz.
Inabitável (Inabitável) – Brasil, 2020
Direção: Enock Carvalho, Matheus Farias
Roteiro: Matheus Farias e Enock Carvalho
Elenco: Luciana Souza, Eduarda Lemos, Erlene Melo, Sophia William
Duração: 20 min.
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Letícia, Monte Bonito, 04
Um evento nostálgico bem exposto, mas com um certo intimismo que se conforta em si, limitando ou aflorando algum sentimento muito individual que não parelha nem uma alegria redundante, nem finaliza um verão de uma tarde.
Desde o toca disco com o botão do volume adesivado por um emoji à imagem da Avril Lavigne na parede, tendo até uma cena gravada dos bonecos de pelúcia no quarto de Letícia com uma fotografia caseira; o ambiente forjado para o curta não pertence apenas a personagem título. Claramente a TV Phillips com adesivos e programação passando Xena é a memória de alguém transposta para uma nova narrativa. Nesse sentido a diretora Julia Regis coloca um atributo de honestidade sobre o que se espera da obra. A imagem da casa, o plano frontal de início, é fixado como uma monotonia elucidada desde do começo, em que o agito se baseia exclusivamente nas duas protagonistas, em suas tensões sexuais e brincadeiras com a mesma monotonia.
Em geral é tudo demodê, não existe uma nostalgia espacial que tente afetar a relação das duas, e até certo ponto a própria relação das protagonistas se transformam nesse ponto nostálgico. Como há uma intimidade clara com esses efeitos temporais, qualquer julgamento quanto ao conforto da obra se volta para o espectador ter a missão de compreender porque essa tarde pode se tornar especial. Assim, a diretora usufrui da monotonia como fuga crítica instintiva, pois como tal experiência do curta pode ser julgada na mistura do tempo de memória pessoal presente como trama? Não se forma uma relação de escapismo com o espectador, é apenas a natureza de uma obra que em si é a fuga das personagens e da diretora, mas também não se mostra como convite para quem assiste.
Afinal, como é passageira a tarde amorosa e fervilhante de música comportamental que une as duas garotas, o convite ao escapismo quebraria também a circunstância da exposição da intimidade nostálgica, de uma obra autoral que se deleita em entreter claramente pelo conforto de um tempo e espaço específico. Então tudo se mostra satisfatório, não há imersão, mas também não há desvio de proposta de efeito de apenas mostrar uma tarde de verão na memória.
Letícia, Monte Bonito, 04 (Letícia, Monte Bonito, 04) – Brasil, 2020
Direção: Julia Regis
Roteiro: Julia Regis
Elenco: Maria Galant, Eduardo Bento
Duração: 19 min.