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Crítica | Império dos Sonhos (2006)

por Luiz Santiago
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Derradeiro filme da trilogia sobre Hollywood, antecedido por Estrada Perdida (1997) e Cidade dos Sonhos (2001), Império dos Sonhos pode ser considerado o filme mais sombrio e enigmático de David Lynch, sendo, antes de tudo, uma fusão de dezenas de ideias que ele foi cultivando ao longo da carreira, caráter que mostra, inclusive, a origem da obra, nascida de uma série de curtas, monólogos e cenas aleatórias (“um experimento“, como o diretor disse ao telefone para Laura Dern) gravados de maneira despreocupada e depois refilmados ou usados diretamente no filme, que não teve um roteiro prévio. A cada dia de filmagens, Lynch assistia aos copiões, consultava seu caderno de notas sobre a sequência de eventos e escrevia o que achava que deveria vir a seguir. Não espanta o fato de Dern e Justin Theroux terem dito diversas vezes ao longo da produção que não faziam ideia do que o filme se tratava.

Este é um ponto que precisamos levar em consideração desde o início. A gente REALMENTE precisa entender por completo um filme para julgar a sua qualidade artística, de cinema como linguagem e de objeto narrativo, mesmo que possa significar centenas de coisas ou absolutamente nada? Ou será que olhar diretamente esses elementos de composição, a sintaxe cinematográfica, guiada por um diretor e sua equipe técnica, bastariam para analisar uma obra? Filmes como Um Cão Andaluz (1929), A Idade do Ouro (1930), El Topo (1970) e A Montanha Sagrada (1973) são um verdadeiro desafio em termos de compreensão, mas o julgamos através de sua proposta e procuramos lidar com os seus mistérios e múltiplos significados, não é mesmo? São obras surrealistas, verdadeiros sonhos (ou pesadelos) em película dos quais buscamos um fio da meada para inferirmos conceitos centrais e a partir daí aproveitarmos a sessão.

A mesma coisa se dá com filmes que possuem partes surreais, partes oníricas, experimentos cinematográficos ou narrativos e ainda assim são obras que não compreendemos de todo, vide A Concha e o Clérigo (1928), Oito e Meio (1963), A Cor da Romã (1969), Valerie e a Semana das Maravilhas (1970), O Discreto Charme da Burguesia (1972), Delicatessen (1991) e tantos outros. O que pode dar errado aí? Bom, qualquer coisa que pode dar errado em qualquer obra realista: exageros ou decisões atropeladas da direção e da montagem; má ou incoerente representação dos próprios conceitos da fita; ou pura e simples contemplação de alguma realidade, sem contexto imediato para que ela tenha sentido em si mesma ou que faça sentido para o todo da obra. Surreal ou real, os conceitos de análise para um filme permanecem os mesmos. Compreender a temática por completo é um luxo que nem sempre um roteiro nos permite. E ainda assim é perfeitamente possível julgar e analisar a fita, ao contrário do que se diz por aí.

O que também pode diminuir um enredo é a exposição de cenas que focam em coisas que o espectador saberia ou chegaria à conclusão por outros e mais objetivos caminhos. De certa forma, Império dos Sonhos comete um pouquinho de cada um desses pecados, principalmente nas repetições — destaque para as cenas da louca sitcom Rabbits, lançada em 2002, com a sinopse “Em uma cidade sem nome, inundada por uma chuva contínua, três coelhos vivem com um grande mistério entre si.” — ou falhas em cenas que ligariam e se aprofundariam em personagens. Todavia, isso não chega ao ponto de fazer de Império dos Sonhos um filme ruim. Pelo contrário. Trata-se de um labirinto cinematográfico aplaudível, o primeiro experimento digital de David Lynch, que começa com algo que será respeitado até o último minuto, encontrando, em seu miolo, diversos Universos e abismos dentro de abismos.

Laura Dern é Nikki Grace, uma atriz em baixa que recebe a confirmação de que foi escolhida para interpretar o papel de Susan “Sue” Blue em um filme já bastante falado em Hollywood: No Céu de Dias Tristes (On High in Blue Tomorrows). Ela será acompanhada pelo galã Devon Berk (Justin Theroux), que interpretará Billy Side. As filmagens se iniciam e o diretor (Jeremy Irons) junto do assistente de direção (Harry Dean Stanton) contam para Nikki e Devon que No Céu de Dias Tristes é a refilmagem de um filme polonês “cujo título em alemão era 47“. As filmagens da obra original foram interrompidas porque os protagonistas foram mortos. Neste momento, de maneira muito habilidosa, o roteiro planta a ideia de “filme amaldiçoado” e em pouco tempo, justamente quando começa a haver algum envolvimento entre a dupla principal, as coisas enlouquecem. Lá pelos 55 minutos temos a primeira interação entre realidades e é como uma Caixa de Pandora aberta. A partir do momento que vem à tona a noção de que existe o universo de Nikki e Devon; o universo do filme que eles atuam e os universos dentro desse filme (ou através de todos os Universos mostrados) a normalidade narrativa desaparece. A ideia do filme dentro do filme é fixa, mas o labirinto e o nosso choque após percorrê-lo jamais serão sanados.

Como era de se esperar, há diversas referências de outras obras do diretor aqui, especialmente dos conceitos de “maldade escondida em lugares comuns” trabalhados de maneira definitiva em Twin Peaks e Os Últimos Dias de Laura Palmer. Nessa jornada, afundamos no subconsciente, nas histórias rejeitadas, nas brigas e crimes de bastidores que atravessam a grande fábrica de sonhos do cinema. Terminando a trilogia de Hollywood, o diretor nos traz a total desglamourização das estrelas e da própria ficção, aproveitando o processo para brincar com um lugar mágico, um Fantasma, casos extra-conjugais, violência contra a mulher, lendas urbanas e as coisas que atores e atrizes precisam esquecer ou ignorar a partir do momento que assumem um projeto.

É uma crítica, mas não muito enfática. A obra está mais para uma visita existencialista e psicológica aos envolvidos no filme dentro do filme, do que no apontamento das falhas no star system. Explorando o máximo de incidência de luz e paleta de cores (o próprio Lynch é o diretor de fotografia e o editor da obra), manipulando o máximo possível a câmera digital (mão, grua, pedestal) e criando planos e transições em diversos sentidos, Lynch atravessa cenários operando uma textura imagética e uma atmosfera musical únicas, espalhando pela tela as peças de um quebra-cabeças que deveremos montar ao nosso bel prazer. Consideremos os espaços e os plots essenciais abaixo.

  1. Estúdio da filmagens e mansão de Nikki (Hollywood).
  2. “Casa rosa” de Susan nos subúrbios. Mansão de Devon Berk e Billy Side.
  3. Casa/domínio do Fantasma (Krzysztof Majchrzak), aquele que Susan mata, atirando várias vezes. Ele também é o gerente da história do circo e também o homem que organiza assassinatos com chave de fenda, hipnotizando pessoas.
  4. Quarto 251, onde uma jovem mulher está assistindo TV (Rabbits, principalmente), como em uma punição (provavelmente colocada ali pelo Fantasma — notem que quando ele é destruído por Susan, esta “Lost Girl” consegue sair do quarto).
  5.  Cenas na Polônia, com ruas cobertas de neve (anos 40? Cenas do filme 47?).

Em cada um desses lugares notamos um tratamento de personagem que parece terminar com a recusa da própria ficção por um tipo de realidade onde o mal também é cabível e com o qual é possível conviver. Nikki, por exemplo, chega a ver a sua personagem do outro lado da rua e mais uma vez se angustia por seu estado mental, até porque essa é uma longa sequência, aparentemente a sequência final, do filme no qual está trabalhando. Decidida a não aceitar mais essa dualidade, ela encontra novamente o “portal” entre as realidades, mata o Fantasma, libertando, com um beijo, a Lost Girl do quarto da TV (que imediatamente se reúne ao marido e ao filho), e ficando ela mesma em um estágio de transformação.

As vidas, os deuses e as versões pelas quais passou ao aceitar o papel de um filme amaldiçoado tiveram pelo menos uma consequência (lembram-se da fala da vizinha, interpretada por Grace Zabriskie?): a personalidade de Nikki se fundiu à personalidade de Susan. Na penúltima cena, quando a vizinha aponta para Nikki do outro lado da sala, ela já é uma nova mulher… o cabelo está diferente, a postura, o figurino. A conta que ela tinha para pagar foi paga (morrer, matar, viver outras vidas, visitar outros Universos na Terra) e a Nikki do amanhã nasceu. Uma Tulpa, talvez?

Então um corte temporal nos leva para um tempo incerto (provavelmente o futuro), onde vemos a irmã do Fantasma (que já tinha aparecido em um monólogo de Susan, afirmando que ele tinha uma irmã com apenas uma perna), e a prima, dona de um macaco, peruca loira e buraco na vagina que foi apresentada pela moradora de rua japonesa a Nikki/Susan na cena final de No Céu de Dias Tristes.

Ao som de Sinnerman, canção perfeitamente escolhida para o momento (falando do Apocalipse, da destruição, da perdição, do fim das coisas e, diante de tudo isso, para onde o homem irá correr), primeiro com um arranjo musical e depois com a voz de Nina Simone, temos o encerramento de todas as histórias. Aquele seria o purgatório da atriz e da personagem? Ou apenas a representação da fuga que a ficção, agora terminada, nos traz, através do cinema? Reparem que não importa o que tenha acontecido de ruim no processo, em Hollywood, o que se aprecia mesmo é um final feliz. Até no último momento Lynch conseguiu tirar sarro da indústria usando o próprio conteúdo do filme, que a despeito de tudo, ainda é um intenso mistério. Um dos mais interessantes já vistos no cinema. Um verdadeiro Império de sonhos.

Império dos Sonhos (Inland Empire) — França, Polônia, EUA, 2006
Direção: David Lynch
Roteiro: David Lynch
Elenco: Laura Dern, Jeremy Irons, Justin Theroux, Karolina Gruszka, Jan Hencz, Krzysztof Majchrzak, Grace Zabriskie, Ian Abercrombie, Karen Baird, Bellina Logan, Amanda Foreman, Peter J. Lucas, Harry Dean Stanton, Cameron Daddo, Jerry Stahl, Nae, Terry Crews, Nastassja Kinski, Naomi Watts, Neil Dickson
Duração: 180 min.

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