Em Pauline na Praia (1983), Éric Rohmer encontra o contexto das férias de verão para filmar o mundo de todos os dias dentro de um microcosmo ordenado e regido por leis próprias. Assim, a ficção delimitada geograficamente, em Pauline na Praia, possui o papel de capturar as forças próprias do verão que irão entorpecer aqueles personagens e ordenar suas ações. Dentro de uma atmosfera que carrega dos mares um ar de sedução e malícia, respira perdida uma Eva, último sinal de pureza e inocência neste universo. Na cena inicial, quando as portas da casa de veraneio se abrem e, posteriormente, na cena final, se fecham, é como se o diretor estabelecesse uma barreira invisível que faz com que aquela narrativa de férias seja separada do mundo externo (principalmente do seu moralismo) — contexto narrativo similar ao de Extremos do Prazer (1984), de Carlos Reichenbach. A praia é um lugar livre e perigoso.
Inicialmente, para falar de Ilha do Tesouro (2018), importa evocar Rohmer, inequívoca referência para Guillaume Brac, e este filme em particular, para traçar uma consonância e uma dissonância entre ambos. De similar, o filme de Brac também se dá em um microcosmo delimitado, se passando em um parque aquático nos subúrbios de Paris. Além disso, ainda que um seja ficção e outro documentário, eles possuem o mesmo fim: buscar uma beleza que já se encontra no mundo. Por outro lado, a barreira que divide o microcosmo de Ilha do Tesouro não é invisível ou um pacto do filme com o espectador. Ao invés disso, a geografia espacial do cenário escolhido para aquela narrativa é delimitada por grades reais, componentes fundamentais das imagens capturadas pelo diretor. É neste sentido que Brac irá se opor à Rohmer, pois interessa a ele mostrar o que está para além dos limites do parque, fazendo do seu espaço “mágico” de poroso ao mundo real, invadido por seus problemas e políticas incontornáveis.
Sendo um documentário, imagina-se que muito do material prévio possa ter sido filmado aleatoriamente e ganhando sentido na montagem. Portanto, é importante entender que peso possuem os recortes escolhidos para marcar o início e o fim de Ilha do Tesouro. Para começar, em uma espécie de prólogo, Brac acompanha crianças, sem dinheiro para o tíquete, que são negadas na entrada no parque e, posteriormente, são expulsas por seguranças privados ao invadi-lo. Desde já, o espaço privatizado e a “lei” são apresentados como componentes fundamentais deste universo e estão presentes por todas as suas interações. No mesmo sentido, mostrar a negativa do acesso estabelece também sua problemática social, ainda que o discurso nunca sequestre o filme para si ou seja o motivo de sua existência, mas apenas um elemento integrante natural dele. Já na cena final, novamente voltando seus olhos para crianças, acompanha dois meninos negros que brincam à margem dos limites do parque com gravetos e “escalam” um morro de grama, cujo “pico” revela a imensidão da paisagem ao redor deles. No fim, se o espaço do parque é privatizado, os limites da liberdade e também da criatividade infantil não podem ser delimitados, em um convite para fora do espaço narrativo de Ilha do Tesouro.
Em que pese o parágrafo anterior parecer direcionar a leitura de Ilha do Tesouro a dependência de significações, a interpretação política acima é mais uma decorrência natural secundária e menos uma imposição de Brac na busca por metáforas visuais. Ou seja, por exemplo, se existe uma tensão na cena em que se vê dois funcionários negros interagindo com dois consumidores brancos do parque, esta é a realidade do mundo se impondo para dentro do filme e não o processo oposto. As problemáticas do mundo são interpretáveis porque existem nele. Essencialmente, o olhar aqui é para o mundo como ele é, com o diretor, a não ser pela interferência mais básica de escolher o que enquadrar (dilema que continua na montagem), jamais chamando atenção para si em nenhum momento, a partir de uma aproximação com uma ideia cristalina de um Cinema que permite revelar a Beleza (e, neste caso, também seus problemas) a partir da preservação da própria natureza. Independentemente de quem sejam (jovens ou idosos, homens e mulheres, negros e brancos), todos estão sob a luz natural do Sol e é isso que importa para Brac. Sem sombras ou distorções, a Verdade do mundo ficará explícita nas imagens, que se revelarão por si só.
Como todo microcosmo, o que acontece no parque aquático age como potencializador e revelador das relações e sentimentos existentes dispersos pelo mundo fora dele, que agora se aglutinam como parte de uma única atmosfera. Em Ilha do Tesouro, o que Brac faz é botar em dialética duas forças opostas. De um lado, há a revelação do lado institucional do parque, ao mostrar reuniões de possíveis gestores que tomam suas decisões, tal qual o ponto de vista dos funcionários que executam ordens e fiscalizam as leis internas a serem cumpridas — há, por exemplo, diversos lugares proibidos de pular ou impróprios para banho. Ao jogar luz nesses bastidores e nessa tentativa de governar/policiar a natureza, cria-se uma relação dialética com o outro lado da moeda, que é o acompanhamento de Brac aos jovens e sua natureza indomável.
Inegavelmente, há uma predileção pelo frescor de uma juventude, que parece ser o ponto de vista perfeito para Brac revelar as relações do mundo e sua Beleza. Dentro desta pequena sociedade, uma ideia quase anárquica surge: onde há leis, há transgressão. Alheio a moralidades, as imagens encontram na rebeldia juvenil e seu senso por adrenalina uma manifestação da liberdade, da Vida, com Brac muito fascinado nas imagens de tentativas de cortejo, práticas de esportes radicais ou apenas a filmagem de ações proibidas/perigosas. No único momento em que o filme flerta em abandonar o realismo para se aderir ao fantástico, uma ida de stand-up para uma caverna (na qual o diretor jamais faz questão de iluminar, abraçando sua escuridão) se revela como ápice dessa exploração de um diretor que está disposto a se jogar rumo ao desconhecido e fazer daquele lugar uma ilha do tesouro.
Não só os personagens de Ilha do Tesouro são desbravadores do parque, mas o próprio Brac é por si só um exímio caçador de tesouros, encontrando imagens preciosas escondidas no meio de sua vastidão. Longe das aglomerações e do calor humano da juventude, o diretor enxerga a beleza em outras interações humano-natureza, virando os olhos para pessoas desfrutando em silêncio ou dando espaço para relatos de memórias pessoais envolvendo o parque. Por sua vez, o contato imediato com a natureza, sem a intermediação humana, também é valorizado, como o apontar da câmera para animais na água, assim como quando a câmera flutua sobre ela, movimentando-se suavemente de acordo com o ritmo da natureza. Não menos importante, a capacidade em trazer as pessoas invisíveis ao visível, iluminando os marginalizados e suas histórias — a fantasmagoria das imagens noturnas do parque vazio acompanhando o relato do guarda negro ressignificam todo o espaço do parque — completam esse grande ecossistema de maneira minuciosa.
O que faz com que Ilha de Tesouro seja tão impressionante ao seu final é justamente como Brac consegue fugir de maniqueísmos e encontra sucesso na sua relação de honestidade com o material. Quanto mais ele se foca em encontrar a beleza naquele microcosmo, ao mesmo tempo, sem precisar fazer esforço, ele vai revelando uma série de mecanismos invisíveis e contradições que são parte de qualquer tipo de sociedade do mundo dentro do capitalismo global e tardio. Aí o grande mérito de um cineasta autêntico: pegar as imagens desorganizadas do mundo, organizá-las e deixar que o mundo retribua algo de volta.
Ilha do Tesouro (L’île au trésor, 2018) — França
Diretor: Guillaume Brac
Roteiro: –
Elenco: –
Duração: 96 minutos