Em Identidade, adaptação elegante de Rebecca Hall do romance de Nella Larsen de 1929, acompanhamos uma das premissas mais intrigantes e polêmicas da memória recente do Cinema. No filme, nós conhecemos Irene (Tessa Thompson), uma mulher inquietamente percorrendo um bairro predominantemente branco de Manhattan na década de 1920. A agitação da personagem vem do fato que ela é uma mulher negra se “passando” por caucasiana ao se pintar de branca e facilmente interagir em um setor rico sem se preocupar com racismo – apesar de que ela está em constante receio de ser descoberta. Durante o passeio, Irene encontra a vibrante velha amiga Clare (Ruth Negga), uma moça que vive constantemente se “passando” por branca, inclusive se casando com um marido racista (Alexander Skarsgard) que desconhece a verdadeira cor de pele da esposa.
Além do conceito bizarro, que é na verdade inspirado em casos reais, especialmente nos EUA, de pessoas que se “passavam” por outra raça para escapar das convenções legais e sociais de segregação racial e discriminação, o segundo aspecto que mais causa estranheza no filme é o de plausibilidade. Não é como se Tessa Thompson tivesse traços europeus ou uma aparência realmente “passável” por branca, e até mesmo a mais plausível Ruth Negga não é lá tão razoável dentro dos preceitos visuais do papel. Mas a questão é: isso realmente importa? Ou melhor, isto é um ponto necessariamente negativo?
No longa, a ideia de quem pode “passar” por uma raça diferente não é tão atraente quanto os motivos por essas escolhas. Aliás, a questão de pretender e disfarçar não ocorre apenas no campo de identidade racial, mas também lida com gênero, posição social, sexualidade, caráter e individualidade. É por isso que desgosto da tradução brasileira para o ótimo título original, “Passing”, pois somos inseridos em um filme sobre personagens incapazes ou sem vontade de admitir quem são, indo além de identidade para dissimulação, segurança, auto-aversão e até mesmo tédio sendo sugeridos como possíveis explicações para as motivações dos personagens.
Posso estar exagerando, mas até a escolha de atrizes tão claramente implausíveis para os papéis implicam a proposta de que tudo nesse filme é sobre fingimento; é como se esses personagens, essa sociedade, maridos e esposas, e de certa forma até o filme, todos vivessem em negação do que ocorre em tela. Notem como o personagem de Hugh (Bill Camp), um homem branco, facilmente descobre que Clare é uma mulher negra após Irene apenas levemente insinuar. Por que ele não notou isso antes? Ou como o marido de Clare nunca descobriu estar casado com uma mulher negra? Chega a ser risível pensando por uma vertente realista, mas a proposta aqui é algo mais absurdo mesmo. Absurdo como pessoas que vivem de uma falsa aparência, seja racial, matrimônios falsos, amizades invejosas e vidas superficiais. Absurdo em tom de crítica para o “diferente” que precisa viver um cotidiano adulterado para de alguma forma “se encaixar” ou simplesmente sobreviver em uma sociedade discriminatória – que até hoje não gosta de reconhecer preconceito.
A parte técnica do filme enfatiza essa discussão. Hall escolheu filmar no monocromático preto e branco, tanto para ironizar visualmente a área moral cinzenta da história quanto como uma escolha engenhosa que permite “esconder” a aparência de Clare e Irene quando estão “passando”. Tudo é visualmente e superficialmente falso ou omitido nesse filme. Até mesmo a proporção quadrada de 4: 3 soa como uma escolha de projeção para indicar que algo está sendo ocultado em tela. Além de que essas escolhas estéticas criam a belíssima configuração de um filme de época, carregado com elegância nos figurinos, ambientes – viram como o Harlem é filmado como um bairro nobre? -, linguajares e na trilha sonora pontuada por delicadas teclas de piano em transições de cena. Tudo tão lindo, sofisticado e cortês, enquanto nos núcleos pessoais e relacionais há podridão, infelicidade, medo e sofreguidão.
Tudo isso só funciona pela abordagem calma e sutil de Rebecca Hall, tanto no texto quanto na direção. Não há grandes explosões, nem discursos. Tudo está um pouco abaixo da superfície, fervendo e esperando para estourar. Cada diálogo carrega um subtexto racial, de gênero ou de sexualidade, mas pouco é realmente falado ou objetivo. Cada movimento delicado de câmera tem um propósito para expor visualmente algo que não será explicado. Encaradas de confusão e paixão entre as protagonistas, indicando desejo e inveja; linguagem corporal que evidencia dores não ditas, como na ótima cena que uma desconfortável Tessa Thompson ri dos comentários racistas de John; ou recusa da realidade (mais necessariamente vontade de mudá-la sem aceitá-la), quando Irene priva Brian (André Holland) de explicar a seus filhos sobre racismo ou trata sua empregada negra com desprezo.
Identidade descasca seus temas complexos sem reverberá-los, apenas usando de refusa e omissão visual, de conversações e das performances. Essa falta de impulso narrativo proporciona um tom monótono ou até confuso em determinadas situações, mas Rebecca Hall cria uma exibição primorosa de técnica e discurso que se envolvem em torno de uma experiência específica: a de “passar”, não apenas no contexto histórico que dá base ao filme ou dessas personagens, mas de um fator humano e social que sempre circula o fingimento. Chega a ser irônico como o longa fala tanto sem realmente dizer tanto. No fim, nem o desfecho é nítido – suicídio, assassinato ou acidente?. Só resta a morte cercada da pureza da neve. A beleza superficial escondendo a realidade cruel.
Identidade (Passing) – EUA, 10 de novembro de 2021
Direção: Rebecca Hall
Roteiro: Rebecca Hall (baseado no romance Passing, de Nella Larsen)
Elenco: Tessa Thompson, Ruth Negga, André Holland, Bill Camp, Gbenga Akinnagbe, Antoinette Crowe-Legacy, Alexander Skarsgård
Duração: 99 min.