Pouco a pouco os serviços de streaming tem corrido para realizar suas próprias produções originais, que funcionam como o maior incentivo para as pessoas assinarem seus serviços, com a Netflix beirando os cem milhões de assinantes à data de publicação desta crítica. Digno de nota, também, é a presença de Manchester à Beira-Mar concorrendo ao Oscar de Melhor Filme – embora não seja um filme realizado pela Amazon Studios, os direitos de sua distribuição, nos EUA, estão nas mãos da empresa, que conseguiu comprá-los antes de grandes estúdios como Fox Searchlight, Lionsgate e Universal. Não é arriscado dizer, portanto, que tais formas de distribuição de audiovisual estão alterando completamente o cenário global, criando a necessidade de todos se modernizarem a fim de conseguirem competir com esses novos gigantes.
Dentro desse cenário, a Netflix já está mais que estabelecida. Tendo começado como uma locadora de DVDs, o serviço transformou suas obras originais em sinônimo de qualidade e não é por menos – apesar de alguns deslizes, o canal já nos entregou House of Cards, Orange is the New Black, The Crown, dentre muitas outras, isso sem falar em filmes, como Beasts of no Nation, que chegou a ser contemplado em várias premiações pelo mundo afora. Eis que chegamos a iBoy, o primeiro longa-metragem original da companhia sobre um super-herói, ainda que estejamos falando de algo bem diferente do que a Marvel e a DC Comics tem feito nos últimos anos.
A trama gira em torno de Tom (Bill Milner), um jovem morador da periferia de uma cidade britânica. Após presenciar um assalto à casa da paixão de seu colégio, Lucy (Maisie Williams), ele acaba levando um tiro na cabeça enquanto está fugindo e tentando chamar a polícia pelo celular. Quando acorda de um coma de dez dias, ele descobre que partes de seu dispositivo móvel acabaram entrando em seu cérebro, o que dá a ele a habilidade de se conectar com qualquer objeto eletrônico. Rapidamente Tom se torna uma espécie de super-hacker e decide ir atrás dos sujeitos que estupraram sua amiga.
Evidente que, assim como qualquer filme de heróis, é necessária certa dose de suspensão de descrença do espectador, é claro que pedaços de celular na cabeça de alguém jamais daria a ela poderes, mas tampouco um ser humano poderia escalar paredes se fosse mordido por uma aranha radioativa. Portanto, criticar a obra aqui em questão por essa falta de realismo seria no mínimo uma hipocrisia, especialmente considerando que ninguém fala mal do Homem de Ferro por ele não virar geléia toda vez que pousa com sua armadura em alta velocidade.
De fato, quando nos deixamos levar por esse universo do jovem hacker, passamos a nos divertir com as diversas possibilidades de sua atuação e o roteiro de Joe Barton, que, por sua vez, fora baseado no livro homônimo de Kevin Brooks, sabe abordar desde pequenas conveniências para Tom, até ações mais grandiosas. Conforme o texto progride ele se torna uma espécie de supercomputador e os efeitos especiais fazem o ótimo trabalho de colocar em tela de uma maneira que entendemos exatamente o que ele está fazendo, sem ser necessário uma linha de diálogo superexpositiva.
É preciso reconhecer, também, que, ao contrário da grande maioria de obras desse subgênero, aqui temos verdadeiramente a concepção de que algo pode dar muito errado. Sentimos durante toda a projeção que, apesar de tudo, o protagonista está em uma posição vulnerável, por mais que a tecnologia esteja a seu comando, estamos falando de um hacker combatendo gangsters e jamais sabemos quando ele pode ou não levar um tiro enquanto se mete com suas operações. Além disso, o texto não esconde a violência dessa realidade, tornando a morte um elemento constante na narrativa, que não tenta ser higienizada em momento algum.
O personagem principal, Tom, ainda é construído de tal forma que entendemos perfeitamente suas motivações. É o típico caso de uma ação que vai tomando proporções maiores e que rapidamente foge ao controle, trazendo inesperadas consequências. Infelizmente, isso acaba gerando um problema de ritmo na narrativa, visto que a inserção de novos antagonistas cria praticamente novos começos dentro da obra. iBoy acaba, em certos, pontos, portanto, se tornando uma experiência cansativa, dilatando seus curtos noventa minutos de duração em uma percepção de que o filme dura varias horas.
Esse fator é aumentado pelo grande deslize do ato final do longa-metragem, que dispensa as interessantes ramificações tecnológicas que abordara antes a favor de uma resolução já mais do que vista em centenas de filmes de gangsters. A sensação de urgência que sentíamos antes vai toda embora e nem mesmo Rory Kinnear, que aparece nos últimos minutos do segundo tempo, consegue salvar o final, que ainda nos entrega uma solução deus ex machina ao invés de abraçar a crueza desse universo construído pelo roteiro.
Felizmente, esses tropeços no fim não conseguem afastar nossa percepção positiva da obra, que explora temas interessantes enquanto introduz um herói bastante diferente dos outros presentes no cinema e televisão até então. Temos aqui uma obra que lida com os problemas sociais e não tem medo de retratar a violência na sociedade, o que, por si só, já garante a urgência da narrativa. Certamente os grandes estúdios vão precisar correr atrás da Netflix e outros canais de streaming, especialmente quando se trata da qualidade de seus filmes mais comerciais – uma pena que essa corrida não necessariamente nos trará melhores filmes nos próximos verões no cinema.
iBoy — Reino Unido, 2017
Direção: Adam Randall
Roteiro: Joe Barton (baseado no livro de Kevin Brooks)
Elenco: Bill Milner, Maisie Williams, Miranda Richardson, Rory Kinnear, Jordan Bolger, Charley Palmer Rothwell, Armin Karima
Duração: 90 min.