Eu nunca tinha ouvido falar de Hotel Hazbin antes de a série aparecer do nada no Prime Video, mas, pesquisando posteriormente sobre a produção da A24 em sua primeira série animada (e segunda série no geral, depois de Treta), descobri que ela nasceu em 2019, na forma de um piloto criado, coescrito e dirigido por Vivienne Medrano (Vivziepop) e lançado no YouTube cujos direitos foram adquiridos em 2020, mesmo ano em que uma série spin-off (Helluva Boss) foi lançada também no YouTube. Ou seja, trata-se desde já de um mini-império criativo por parte de Medrano que, ainda bem, ganhou projeção mais mainstream, pois a criação dela é uma divertidíssima delícia musical que merece ganhar destaque.
O episódio piloto – que não faz parte da temporada inaugural lançada no streaming da Amazon, mas que é canônico pelo eventos ocorridos por lá serem referenciados na série – é uma insanidade livre de quaisquer amarras criativas. Ele chega a ser até um pouco desestruturado e solto demais, diria, mas isso faz parte do fato de ele ser, basicamente, um grande laboratório de ideias em termos de roteiro e visual que conta a história de Charlotte “Charlie” Morningstar (Erika Henningsen), filha de Lúcifer (Jeremy Jordan) e Lilith que, tentando minimizar os efeitos dos massacres anuais que os anjos exterminadores do Paraíso realizam no Inferno de forma a “controlar” a população, inaugura um hotel que objetiva redimir almas, uma ideia que é recebida com um misto de zombaria, gozação e dúvida por todos, até mesmo por sua namorada Vaggie (Stephanie Beatriz). Somente quando o misterioso Alastor, o Demônio do Rádio (Amir Talai) surge oferecendo sua ajuda sem dizer o que realmente quer em troca, é que as coisas começam a tomar forma, algo amplificado pela arregimentação do hesitante ator pornô de quatro braços Anthony “Angel Dust” (Blake Roman) para ser uma espécie de cobaia.
Naturalmente, no processo de desenvolvimento do piloto em uma série, Medrano deve ter tido que fazer concessões em relação à sua criação para conseguir investimento e a essencial distribuição. Digo isso, pois a ausência completa de amarras do piloto não existe mais na série, que ganha estrutura narrativa clássica que lida, no micro, com o cotidiano do hotel e as forças ocultas no Inferno e, no macro, com a ameaça do próximo massacre angelical que passa a ser bianual, depois que Charlie acaba provocando o exterminador-mor Adão (sim, aquele Adão), com voz de Alex Brightman, talvez um dos personagens mais deliciosamente babacas que já singrou o audiovisual. Na comparação com o piloto, vê-se “podas” criativas aqui e ali que, no final das contas, pelo menos para mim, funcionaram para tornar a temporada mais facilmente digerível por uma parcela maior do público em geral.
Mas quatro coisas não mudam entre piloto e temporada: a originalidade dos visuais, a qualidade da animação, o inacreditável trabalho de vozes e a absoluta perfeição das canções, na base de duas por episódio. Ah, eu não falei que Hotel Hazbin era um musical? Falha minha! Pois é isso mesmo: trata-se de uma série animada musical que se passa no Inferno, o que só acrescenta outra camada de deliciosa sandice à criação de Medrano. Falando dos visuais, eles são fenomenais. Desde a “certinha e boazinha” Charlie, que mais parece uma bonequinha, passando por a mais aguerrida Vaggie (aquele “X” que parece flutuar por sobre seu cabelo me dá uma aflição tremenda), o sinistro Alastor de dentes amarelados, o completamente escroto Adão e até o diminuto Lúcifer, tudo funciona muito bem, mas não tão bem quanto os designs dos personagens de aparência “menos humana”, por assim dizer, como o semi-aracnídeo e quase seussiano Angel Dust, o sibilante Sir Pentious (também Brighton), o sábio “barcat” alcoólatra Husk (Keith David) e a completamente enlouquecida e psicótica camareira ciclópica Niffty (Kimiko Glenn). E isso porque estou falando só dos personagens, pois eu poderia dizer o mesmo do design do próprio hotel e das várias partes do Inferno que vemos ao longo da temporada, inclusive o bucólico bairro povoado por canibais a que Alastro leva Charlie no penúltimo episódio, tudo contando com uma paleta de cores que usa o vermelho como base, mas nunca aquele “vermelho infernal” padrão, mas sim algo mais róseo, normalmente em contraste com cores um pouco mais escuras como o cinza e o preto, mas sem jamais diminuir o vigor visual.
A animação é um triunfo. Há uma cinética até difícil de acompanhar na forma como tudo acontece (mais sobre isso abaixo), mas a movimentação dos personagens é fluida, com cada um mantendo suas características do começo ao fim, seja a soberana (essa tradução para “Overlord” ficou fraca – seria muito melhor “Chefona/Chefão”) Carmilla Carmine (Daphne Rubin-Veg) que é, em essência, uma bailarina, seja o bestial abusador Valentino (Joel Perez), um cafetão/produtor que parece beber diretamente de todos os personagens audiovisuais com esses cargos. E, claro, os trabalhos de voz são do mais alto gabarito, valendo especial destaque para… ora, para todos mesmo, até o improvável Keith David como um gato alado bêbado que também canta. Falando nisso, as canções e as performances são capítulos a parte. Apesar de eu ter um péssimo ouvido para música, mesmo, ironicamente, adorando musicais, consigo perceber o cuidado de Medrano e demais roteiristas na confecção das letras e da equipe musical na criação das melodias. Trata-se de material digno de ser escutado como escutamos álbuns de shows da Broadway tamanha é a qualidade da série nesse quesito.
No entanto, tenho para mim que a primeira temporada de Hotel Hazbin funciona melhor nos dramas pessoais do que na linha narrativa macro. Continuo achando muito interessante o conceito dos anjos exterminadores e dos massacres perpetrados anualmente no Inferno, mas acho que a história, nesse ponto, é bastante comum em sua execução, especialmente quando ela se torna o foco dos dois episódios finais. A forma como o conflito entre Paraíso e Inferno é conduzido – tecnicamente excelente, vale reiterar – não empolga muito e Medrano telegrafa demais o que vai acontecer, além de introduzir personagens no último segundo somente para preencher vácuos convenientes (como é o caso da facção canibal que mencionei mais acima). Por outro lado, quando saímos do macro e olhamos para o micro, notamos que o desenvolvimento de alguns personagens é de se tirar o chapéu.
Não é o caso de Charlie, talvez a personagem mais sem graça da série – ela é muito mais um veículo para os acontecimentos do que alguém a quem o roteiro dê real atenção -, mas com certeza é o caso de Vaggie e sua revelação surpresa durante o “julgamento” celestial no sexto episódio (ver Adão tentando explicar o que leva uma alma ao Paraíso é sensacional de tantas maneiras que caberia uma tese teológica só aí) e como ela e Charlie lidam com isso e é mais ainda o caso de Angel Dust, que reputo ter, facilmente, o melhor arco narrativo da temporada. Aliás, o episódio quatro, que foca no pesado drama de vida dele e, de quebra, ainda tem espaço para esbanjar a sabedoria de Husk, é, com bastante folga, o melhor da série e teria sido muito interessante se houvesse mais capítulos na mesma linha, talvez com um arco de redenção menos “fácil” para Sir Pentious ou um mergulho um pouco maior no drama familiar da própria Charlie.
Além disso, Hotel Hazbin peca pelo que posso chamar de caos narrativo. Não, não é difícil acompanhar as linhas narrativas, mas elas são contadas com velocidade infernal, talvez muito superior ao que era realmente necessário para que o espectador possa apreciar com vagar o precioso trabalho visual e sonoro da temporada. Tudo acontece muito rapidamente, com cortes de milissegundos, diálogos que parecem espremidos entre tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, que, muito sinceramente, por diversas vezes senti-me exausto, algo que reputo ser possível também em relação à minha idade já avançada, ainda que, vamos combinar, eu assista qualquer coisa e já esteja acostumado com esse tipo de abordagem veloz e furiosa. O que eu queria mesmo era mais calma por parte de Medrano para lidar com seus personagens e suas histórias. Há muito para ver e ouvir e ela insiste em passar correndo por tudo.
Vale falar brevemente de outra ótima característica da série, ou seja, como a sexualidade variada da maioria dos personagens é um elemento essencialmente mantido em segundo ou terceiro plano, o que empresta uma camada de naturalidade ao que assistimos, sem que discursos didáticos sejam necessários e sem que a narrativa seja artificialmente paralisada para lidar com algo que, mesmo não estando ainda sedimentada na cabeça dura de muita gente, já deveria estar. Até mesmo o relacionamento de Charlie com Vaggie fica nas entrelinhas (bastante claras, admito), somente sendo esclarecido com todas as letras quando a temporada já está mais ou menos avançada, ou seja, Medrano faz de tudo para normalizar uma situação que realmente é normal, mesmo que ainda seja alvo de – sendo muito eufemístico – olhares enviesados aqui e ali.
Hotel Hazbin foi, pelo menos para mim, quase completo ignorante internético, uma grande surpresa neste começo de 2024. Espero que, em temporadas futuras, Vivienne Medrano tenha oportunidade de realmente aloprar (mas reduzindo a velocidade!), como parecia que ia com base no episódio piloto. Mas, mesmo que os donos do dinheiro continuem podando sua criatividade, o que ela conseguiu colocar na telinha já mais do que valeu a pena e há um enorme potencial para muita coisa infernalmente divertida acontecer na medida em que a história ganhe complexidade.
Obs: O nome do hotel é uma contração da expressão “has been”, tempo verbal que significa “foi”, mas que é também usado como substantivo em inglês como na frase “he is a has-been“, seja, “ele já foi alguém” ou “ele já foi importante”, o que, obviamente, conversa muito bem com todo o conceito da série.
Hotel Hazbin – 1ª Temporada (Hazbin Hotel – EUA, 28 de outubro de 2019 – Piloto – e de 18 de janeiro a 1º de fevereiro de 2024)
Criação: Vivienne Medrano (VivziePop)
Direção: Vivienne Medrano
Roteiro: Dave Capdevielle, Raymond Hernandez, Vivienne Medrano (Piloto); Vivienne Medrano, Adam Neylan, Ariel Ladensohn, Rachel Kaplan, Adam Stein
Elenco: Erika Henningsen, Stephanie Beatriz, Alex Brightman, Keith David, Kimiko Glenn, Blake Roman, Amir Talai, Jessica Vosk, Brandon Rogers, Christian Borle, Lilli Cooper, Joel Perez, Daphne Rubin-Vega, Jeremy Jordan, Krystina Alabado
Duração: 230 min. (Piloto + oito episódios)