Akira Kurosawa iniciou a década de 1960 com um filme de forte caráter social e político, uma trama que apontava a corrupção e as falhas da justiça nas relações entre as grandes empresas e os setores públicos do Japão. Guardando semelhanças dramáticas com o Hamlet de Shakespeare, Homem Mau Dorme Bem é essencialmente uma história de vingança, mas a abordagem socialmente crítica do diretor consegue transformar essa visão simples inicial em algo muitíssimo maior.
A partir de 1960, com a criação da Kurosawa Produções, a Toho ficou menos ressabida em patrocinar os projetos de Kurosawa, já que as duas produtoras iriam dividir custos, lucros e prejuízos, muito embora essa posição do Estúdio tenha mudado após a complicada filmagem de O Barba Ruiva. De todo modo, o primeiro filme da Kurosawa Produções não poderia ser mais simbólico e foi uma escolha bastante rigorosa do diretor. Ele queria dar início à sua produtora com uma obra engajada, um pouco na linha dos seus filmes sociais dos anos 1940, mas agora sem a aura do neorrealismo em torno. Homem Meu Dorme Bem é um filme de seu tempo, uma mirada para o interior da burocracia japonesa de seus muitos crimes impunes.
A narrativa não é complexa, mas o roteiro tem algumas idas e vindas que cobram um pouco a mais de atenção do espectador. Apesar das colocações didáticas do personagem de Toshiro Mifune (em mais uma interpretação admirável, assim como a de Takashi Shimura), é necessário entender as motivações e a via crucis que o jovem percorre para conseguir sua vingança. Ele descobre que o pai fora assassinado por ordem dos dirigentes da empresa, que junto com uma ala pública de concessões imobiliárias tem em seu caminho uma longa história de fraudes e assassinatos.
A narrativa começa cinco após a morte do pai de Nishi (Mifune), e só após um bom tempo nos é revelado o seu papel duplo dentro da empresa. Ao mesmo tempo que a história é simples, os muitos detalhes fazem o roteiro crescer e lhe dá uma imponente aura de suspense e de drama social. Mas as reflexões de Kurosawa não são gratuitas. Não é apenas a denúncia vazia de significado, crua, vista de longe. Por sua tendência romântica e bastante humanista, o diretor não se furta em trazer os sentimentos e as consequências até para os mais próximos dos malfeitores. Nesse ponto, vale ressaltar que não há escrúpulo algum que impeça os empresários e funcionários públicos corruptos a manterem o seu quinhão monetário às custas de superfaturamentos, propinas e outros crimes.
Desde o início da obra temos um brilhante diálogo cênico entre o filme e o espectador. Somos inseridos no conflito que se estabelece logo na festa de casamento. A tensão é clara, mas alguns símbolos como o bolo de aniversário em forma de um edifício e os rostos assustados que os empresários e funcionários apresentam ainda são misteriosos para nós e só ganharão significado no decorrer do filme. Ao passo que os crimes são revelados e os inocentes (às vezes nem tão inocentes assim) sofrem, somos obrigados a escolher um lado e, apesar de não ser uma escolha difícil, Kurosawa consegue nos fazer ponderar toda a situação, nos colocando no lugar das vítimas.
A malha burocrática é poderosa e viciante. Os que caem nessa rede dificilmente saem incólumes, primeiro, porque fizeram parte de alguma realização criminosa, segundo, porque seus pares de crime jamais permitiriam um desertor e possível delator. Homem Mau Dorme Bem aborda justamente esse ponto das relações públicas e privadas. O término seco e impiedoso nos deixa com os olhos grudados na tela, estupefatos: no final das contas, o homem mal consegue se safar com muita facilidade, principalmente porque controla, na maior parte das vezes, a estrutura que eventualmente poderia condená-lo. Como se vê, Homem Mau Dorme Bem é um filme que se aplica às muitas situações de escândalo que temos hoje em dia, e claro, aos muitos crimes impunes na galeria dos colarinhos brancos que parecem só crescer, com os anos.
Homem Mau Dorme Bem (Warui yatsu hodo yoku nemuru) – Japão, 1960
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Hideo Oguni, Eijirô Hisaita, Akira Kurosawa, Ryûzô Kikushima, Shinobu Hashimoto
Elenco: Toshirô Mifune, Masayuki Mori, Kyôko Kagawa, Tatsuya Mihashi, Takashi Shimura, Kô Nishimura, Takeshi Katô, Kamatari Fujiwara, Chishû Ryû, Seiji Miyaguchi, Kôji Mitsui
Duração: 151 min.