Não precisamos visitar um manicômio para encontrar mentes desordenadas; nosso planeta é o manicômio do Universo.
Goethe
A briguinha enfadonha entre os fanáticos da Marvel e DC Comics e qualquer outro leitor de quadrinhos que não tenha uma visão de coqueiro sobre o que é a indústria da nona arte, pode ser resumida em duas coisas: 1) ambas são empresas de material artístico tentando ganhar dinheiro; 2) ambas se respeitam muito mais do que os extremistas dos dois lados um dia entenderão ou aceitariam admitir. Os muitos crossovers entre heróis e temáticas que existem nas duas empresas, dentre os quais está Homem-Aranha e Batman: Mentes Desordenadas (1995), é apenas uma das provas disso.
Escrita por J.M. DeMatteis, esta trama é um cruzamento de linhas que se passa na Terra-Crossover ou (vejam que nomezinho horroroso!) Crossoververse, a Terra-7642 da Marvel, onde os personagens da Casa das Ideias coexistem com os personagens da Casa das Sombras. Aí também residem as criações e grupos de outras franquias como Transformers, WildC.A.T.s e Witchblade.
O projeto mais sólido de crossover entre as gigantes Marvel e DC (e digo “mais sólido” porque desde o início dos anos 70 haviam pinceladas claras de personagens em um e outro lugar) aconteceu por intermédio do escritor e agente literário David Obst, que se reuniu com os chefões das duas Casas na época, Stan Lee e Carmine Infantino, e propôs que considerassem uma história com um personagem importante de cada lado. Ambos concordaram e o projeto saiu do papel em poucos meses. Em janeiro de 1976, chegava às bancas Superman vs. Homem-Aranha: A Batalha do Século, com roteiro de Gerry Conway e arte de Ross Andru e Dick Giordano. Estava criada aí não só a Terra-7642 como também uma prática interessante de união de heróis que gerou alguns bons frutos nos anos seguintes.
Em Mentes Desordenadas, DeMatteis utiliza de um recurso moral para dar início aos eventos que farão o Morcegão e o Amigão da Vizinhança se encontrarem. E tudo começa com a psicóloga comportamental Cassandra Briar, denominada pelo Congresso americano para lidar com pacientes criminosos em situações consideradas “mentalmente irreversíveis”. A parte interessante dessa premissa vem quando a Doutora Briar apresenta um dispositivo, um chip que, quando implantado, é capaz de tornar o paciente dócil, meio “zumbi”, mas aparentemente curado de sua psicopatia. Tanto o Aranha quanto sua amiga, a Doutora Ashley Kafka, questionam esse procedimento, pois acreditam tratar-se de uma intervenção imoral na vida dos indivíduos. Em pouco tempo, porém, o resultado que o chip apresenta em Cletus Kasady é memorável e faz com que Cassandra consiga autorização do Estado para aplicar o método em outro paciente classificado como “irreversível”, então internado no Asilo Arkham, em Gotham City: o Coringa.
A arte de Mark Bagley é grandiosa aqui, com traços mais duros e tendendo para linhas retas nos rostos dos personagens, deixando todos um pouco mais velhos ou sérios, imagem que se encaixa bem na Nova York e Gotham tomadas pelo crime. A finalização de Scott Hanna e Mark Farmer não alteram a essência do lápis. A função aqui é trabalhar com intenso contraste visual entre alguns quadros e paneis e fazer da diagramação uma parte imensamente fluída, já que a campanha elenca três personagens de movimentos muito rápidos (Aranha, Carnificina e Batman) e um de movimentos comuns, mas muitíssimo engenhosos, pendendo para o surreal — algo que o texto de DeMatteis destaca o tempo inteiro –, o Coringa. O excelente trabalho de coloração da empresa Electric Crayon (de Steve Buccellato) fecha as polarizações em preto e vermelho dos mundos dos heróis, utilizando as margens e a própria diagramação para trabalhar com algumas cadências de cor ou indicar a transformação de determinado tom corrente, como a chegada de uma ameaça ou a deixa para um período de reflexão.
O maior incômodo na leitura de Mentes Desordenadas é a representação dos personagens. Em termos de sustentação dramática não há muito problema, porque, embora o autor deixe de lado o elemento moral do início e dê toda a atenção para a pancadaria, o trajeto dos personagens é fortemente marcado pelas consequências do chip implantado em Kasady, ressaltando a falha da tecnologia e dos valores defendidos pela psicóloga comportamental, então é possível aceitar, de algum modo, essa sequência exterior não tão bem amarrada. O problema mesmo é a representação dos vilões e, um pouco, dos heróis.
Existem situações em Mentes Desordenadas que não fazem nenhum sentido em se tratando do Carnificina, o personagem que mais sofre com mudança de comportamento, se comparado ao original. Isso não quer dizer que ele recebe um mal tratamento o tempo inteiro, mas a forma como se deixa levar pelo Coringa soa estranho. Assim como o próprio Coringa, no início da aventura, parece mais uma caricatura de si mesmo do que o demoníaco palhaço a que estamos acostumados. Quanto ao Batman e ao Homem-Aranha, o leitor percebe o esforço do roteirista em manter cada um dentro de seus comportamentos padrões, cobrindo os buracos com o deslumbre (por parte de Peter) e respeito (por parte de Bruce) do encontro, de modo que dá até para perdoar alguns caminhos escolhidos que não combinam muito bem com a dupla.
Com uma arte que mescla dois mundos diferentes e um roteiro que, ao menos no começo, levanta uma boa discussão sobre o comportamento humano e quesitos de bondade, maldade, recuperação e reintegração de doentes mentais criminosos na sociedade, Mentes Desordenadas é, acima de tudo, uma HQ violentamente divertida. Ela enche mais os olhos do que a mente e com certeza trará algum incômodo para o leitor que já tenha lido coisas dos heróis protagonistas contra Carnificina e Coringa, mas mesmo assim, é uma saga que vale conhecer, afinal, não é todo dia que temos a oportunidade de ler algo com o o Cavaleiro das Trevas e o Cabeça de Teia numa mesma revista.
Homem-Aranha & Batman: Mentes Desordenadas (Spider-Man and Batman Vol.1 #1: Disordered Minds) — EUA, setembro de 1995
Roteiro: J.M. DeMatteis
Arte: Mark Bagley
Arte-final: Scott Hanna, Mark Farmer
Cores: Electric Crayon
Letras: Richard Starkings
Capa: Mark Bagley, Mark Farmer
Editoria: Eric Fein, Danny Fingeroth
50 páginas