Apesar de mais conhecido como o criador das franquias tokusatsu Super Sentai e Kamen Rider, o lendário produtor, roteirista e mangaká Shotaro Ishinomori mostrou sua verdadeira e inequívoca versatilidade artística quando embarcou em mangás biográficos de figuras histórias famosas de seu país. O primeiro personagem a receber esse tratamento foi o quase mítico espadachim, filósofo e escritor Miyamoto Musashi, na obra de quase 500 páginas que leva seu nome, publicada originalmente entre 1971 e 1972. Em 1986, Ishinomori começou a publicar, em três tomos, a biografia de outro nome histórico japonês muito conhecido em seu país e também no Ocidente a ponto de ter efetivamente influenciado o Impressionismo na Europa, o artista de ukiyo-e (xilogravura) Katsushika Hokusai, que viveu por nada menos do que 88 anos entre 1760 e 1849 e cuja obra mais conhecida talvez seja A Grande Onda de Kanagawa, que, na verdade, é a primeira de sua famosa série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji (a onda é tão conhecida e proeminente que muita gente sequer percebe que o Monte Fuji está lá, pequenino, ao lado direito da obra).
Hokusai por vezes é lembrado também como um mangaká, com algumas pessoas até atribuindo a ele a criação desse tipo de arte em razão de sua também celebrada obra Hokusai Mangá, mas não há um nome apenas responsável pelo nascimento do mangá, mas é sem dúvida sensacional que um dos precursores dos “quadrinhos e cartuns japoneses” ganhe uma biografia na forma de mangá por um dos grandes nomes modernos dessa arte. E a tarefa de Ishinomori, ao abordar Hokusai, deve ter sido substancialmente mais complexa do que quando mergulhou na vida de Musashi, pois, enquanto a vida do espadachim – tanto a real quanto a lendária – é razoavelmente bem documentada, inclusive por ele próprio, a de Hokusai sobrevive de forma bem mais esparsa ainda que grande parte de sua obra chegue intacta até os dias de hoje. Com isso, Hokusai – o mangá de Ishinomori – não pode e não deve ser levado a ferro e a fogo como uma obra histórica, mas sim como a visão quase de realismo mágico por parte de Ishinomori, o que provavelmente a tornou ainda mais interessante.
Estruturalmente, a narrativa é, diria, “linearmente não-linear”, com o mangaká começando com Hokusai aos 42 anos e depois pulando por vários períodos relevantes posteriores de sua vida sempre abordando a criação de suas obras mais importantes e a evolução em sua carreira, de artista empregado a artista independente, deixando evidente a obsessão do artista e sua infinita vontade de se desafiar constantemente, jamais, mesmo em seu leito de morte, aceitando que ele finalmente tornou-se o que poderia ter se tornado. No entanto, entre a sabedoria e a técnica de Hokusai, que adota esse nome depois de vários outros ao longo de sua vida (foram mais de 30!), Ishinomori guia sua narrativa por meio de outro tipo de obsessão do artista, uma relacionada com sua insaciedade e inquietude sexual, algo que o acompanha constantemente com multitudes de parceiras, mas também em pensamento e sonhos. Se alguns mais conservadores podem ver nisso algum tipo de perversão do personagem histórico – vale notar que essa abordagem de Ishinomori é a que menos tem peso histórico -, eu vejo como uma manifestação física de uma mente em constante ebulição e evolução, de um homem incapaz de sossegar, de encontrar satisfação plena naquilo que cria e tenho para mim que é isso que o mangaká quis passar com sua obra, para o mal ou para o bem.
A arte de Ishinomori camba mais para a caricatura do que seu trabalho com Musashi, o que é perfeitamente harmônico com sua abordagem, especialmente porque isso cria a diferenciação necessária para os momentos em que o mangaká reproduz as maiores criações do artista e empresta a necessária abordagem “mágica” que o preenchimento dos espaços em branco na vida de Hokusai acaba exigindo, o que, no final das contas, resulta em uma obra que é uma mais do que eficiente fusão entre realismo e fantasia que conta uma história real sem, porém, compromisso absoluto com a realidade, ou seja, Ishinomori abre muito espaço para uma majestosa reinterpretação de uma vida plena, mas misteriosa; inquieta, mas preciosa. O Hokusai de Ishinomori é um grande personagem de mangá que por acaso é baseado em uma figura real que, por sua vez, teve uma vida tão ampla, colorida e valiosa que parece mesmo um personagem de mangá. É como um círculo perfeito que leva da realidade à ficção e de volta à realidade, mas sem que seja efetivamente possível apontar o dedo para quando a realidade acaba e a ficção começa.
Hokusai é Ishinomori no auge de sua forma criando um mangá valioso tanto por seus próprios méritos, quanto por popularizar a vida e a arte de um dos nomes mais importantes de todos os tempos nas artes plásticas japonesas que merece realmente ser conhecido para além de sua inegavelmente belíssima onda de Kanagawa. E nada melhor do que esse conhecimento ser passado como uma mescla muito bem costurada de realidade e ficção que homenageia – ainda que não cegamente – seu notório protagonista e oferece uma visão ampla de todo o seu corpo artístico.
Hokusai (北斎 – Japão, 1986/87)
Roteiro: Shotaro Ishinomori
Arte: Shotaro Ishinomori
Editora original: Ishimori Production
Data original de publicação: 1986 a 1987
Editora no Brasil: Pipoca e Nanquim
Data de publicação no Brasil: 30 de abril de 2021
Tradução: Drik Sada
Páginas: 612