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Crítica | Histórico Criminal (Criminal Record) – 1ª Temporada

"Servir e Proteger". Mas quem?

por Rafael Lima
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Em uma das primeiras cenas de Histórico Criminal, uma mulher liga para a emergência. Temendo ser morta pelo namorado, ela clama pela polícia, como se esta fosse a sua última esperança, e é mesmo, ou ao menos deveria ser. Por mais que muitos possam ter críticas sobre as forças policiais, a maioria de nós pensa nelas quando o assunto é proteção ou a busca por justiça, e por que não deveria? Afinal, a polícia existe para trazer justamente isso para o cidadão. Paradoxalmente, a polícia é uma instituição que reflete a sociedade, por isso, acaba reproduzindo mazelas sociais como o racismo e o classicismo, o que muitas vezes impede o cumprimento da máxima de servir e proteger a todos. A série criada por Paul Rutman toca justamente nos paradoxos em torno da polícia e na forma como ela é vista pela população, nas diversas tensões sociais e raciais presentes na sociedade britânica, mas que poderiam se aplicar à maioria das polícias do mundo.

Na trama, uma mulher faz uma ligação de emergência anônima que implica que o seu namorado abusivo é o responsável por um crime brutal ocorrido em 2012, e que um inocente está preso, pagando por esse crime. Intrigada, a Sargento June Lenker (Cush Jumbo) inicia uma investigação sobre o assassinato de Adelaide Burrowes (Ema Cavolli), e a prisão de seu namorado, Errol Mathis (Tom Moutchi), um homem negro, feita pelo respeitado Inspetor Dan Hegarty (Peter Capaldi), após Mathis confessar o crime. A investigação coloca os dois detetives em rota de colisão, já que o veterano tem certeza de que pegou o homem certo, enquanto June acredita que uma grande injustiça foi cometida. Mas quando sinais de uma possível conspiração policial começam a aparecer e segredos escondidos começam a ser revelados, June e Hegarty devem encarar desconfortáveis verdades sobre si e os seus papéis na polícia londrina.

Ao longo dos oito episódios que formam a sua primeira temporada, Histórico Criminal usa com sabedoria os códigos e a atmosfera do thriller policial para construir o seu mistério central, e o universo de seus personagens. Usando os signos tão conhecidos das histórias policiais, o programa tece uma série de críticas sobre como muitas noções culturais que perpassam a relação da sociedade com a segurança pública e o sistema policial são entrecortadas por questões como o racismo, o machismo e a xenofobia. Isso para não falar de outros problemas, como o excessivo corporativismo na polícia, posto às vezes acima da própria lei, e a politização e espetacularização de certos casos, que atrapalham o próprio trabalho de agentes da lei.

Mas Histórico Criminal não se propõe a mostrar soluções fáceis. Embora o show tenha a sua cota de personagens odiosos, e com isso quero dizer racistas nojentos, a série traz situações em que a simples divisão moral de bem e mal não dá conta. Um exemplo é o ressentimento que a mãe de June (Zoë Wanamaker) tem pela escolha profissional da filha, já que ela não aceita que June tenha se juntado a uma instituição que constantemente perseguiu e intimidou o pai dela, um homem negro. Outra problemática é como o marido de June, Leo (Stephen Campbell Moore), lida com as pressões que a esposa sofre ao reabrir o caso Errol Mathis, o que nos lembra que ações e pensamentos racistas podem estar presentes mesmo em quem pode querer ajudar e reprovar o racismo. A ambiguidade moral, aliás, é a palavra de ordem de muitos dos personagens de Histórico Criminal. Mas ninguém simboliza tanto essa ambiguidade quanto o Hegarty de Peter Capaldi.

O grande mistério do show, é de fato, a natureza de Dan Hegarty, um homem capaz de ir muito longe para obter o que quer, mas que também tem o seu próprio código de honra, que não tolera algumas das ações mais odiosas dos seus colegas. Essa dubiedade o torna um personagem fascinante e imprevisível, pois se em um momento, ele toma ações extremas e até mesmo criminosas para proteger os seus segredos, em outros, nos faz pensar que esse policial se importa mais do que parece com as consequências de suas ações, vide a relação de mentoria que ele manteve ao longo dos anos com o filho de Adelaide, Patrick (Rasaq Kukoyi). Mantendo uma postura fria, o sempre ótimo Peter Capaldi vive o Inspetor como um homem acostumado a estar no controle, mostrando as emoções só o suficiente para comunicar o que quer, o que torna os momentos em que ele deixa que elas fluam mais intrigantes, por não sabermos se são genuínas ou movimentos calculados.

Os devidos créditos também devem ser dados a Cush Jumbo, por fornecer um contraste perfeito para Capaldi com a sua June Lenker, criando uma grande parceria de cena com o ator escocês. Sendo a figura com a régua moral mais afinada da série, era muito fácil que June se tornasse uma protagonista rasa e aborrecida, especialmente quanto posta contra o complexo Hegarty. Mas Jumbo vende muito bem as dúvidas e ansiedades da Sargento Lenker diante das barreiras e cobranças de ser uma policial negra, em uma interpretação altamente emocional que transmite o cansaço e frustração crescente da detetive. Esse trabalho impede que June se torne um mero bastião de moral dentro do programa para ganhar as suas próprias complexidades, em uma atuação mais passional, que acertadamente contrasta com a figura mais gélida e pragmática de Hegarty.

Mas apesar de possuir muitas virtudes, a série tem problemas de desenvolvimento que tiram um pouco o brilho do resultado. Ao longo de oito episódios, são apresentadas uma série de subtramas, como a crise no casamento de June, a doença da mãe da protagonista, o vício em heroína da filha de Hegarty, Lisa (Maisie Ayres), a relação dela com Patrick, entre outros, mas os roteiros têm dificuldade em dar um fechamento satisfatório para essas subtramas. Embora elas ajudem a construir o universo do show e a enriquecer a dupla protagonista, não há como não perceber que a história abandona esses plots após terem dado a sua colaboração para a trama central. Esse aspecto utilitarista dos roteiros se percebe até no plot central, já que a trama torna o destino de Carla, a garota cuja ligação dá início a tudo como um McGuffin, criando até uma contradição no próprio discurso desses episódios, onde a protagonista reforça que Carla é alguém com uma história, e não um mero recurso.

Tecnicamente, a série é fantástica, criando uma atmosfera opressiva e sufocante, mas com uma discrição e economia digna de nota. A fotografia evoca uma Londres de dias cinzentos e noites escuras e úmidas, o que rende ao programa um visual sombrio que casa perfeitamente com o universo do show. A direção de arte também é outro departamento que merece elogios, criando cenários que dizem muito com pouco, vide o escritório da advogada de Errol, que expõe uma profissional que transformou aquele caso em seu objetivo de vida, ou a cena do crime do assassinato de Adelaide, que frisa não só a brutalidade do crime, mas o quanto esse crime destruiu a infância do filho da vítima, retratando isso através dos brinquedos quebrados e de imagens infantis manchadas pelos sinais de violência.

Apesar de possuir alguns tropeços em amarrar e dar fechamento aos diferentes subplots que apresenta, Histórico Criminal ainda é uma série altamente recomendável. A abordagem madura de temas relevantes e complexos, como o racismo estrutural e seu reflexo na instituição policial, convida o espectador para uma boa reflexão na dinâmica do thriller policial. Ainda que o desenvolvimento de seu mistério central não seja tão envolvente quanto poderia ser, o show ainda consegue nos manter entretidos pela atmosfera magnética que constrói, e principalmente pela ótima dupla protagonista, tanto em seu desenvolvimento individual quanto na dinâmica entre os dois personagens.

Histórico Criminal (Criminal Record) – 1ª Temporada. 10 de Janeiro de 2024 a 21 de Fevereiro de 2024
Criador: Paul Rutman
Direção: Jim Loach, Shaun James Grant
Roteiro: Paul Rutman, Ameir Brown, Natasha Narayan, Thomas Eccleshare
Elenco: Peter Capaldi, Cush Jumbo, Zoë Wanamaker, Charile Creed-Miles, Cathy Tyson, Stephen Campbell Moore, Shaun Dooley, Dionne Brown, Tom Moutchi, Aysha Kala, Jordan Nash, Georgina Rich, Rasaq Kukoyi, Maisie Ayres, Kerrie Hayes, Paul Thomley, Steffan Cennydd, Chizzy Akudolu, Carolina Main, Andrew Brooke, Anna Wilson-Jones, Francis Lovehall, Pippa Nixon, Ema Cavolli
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uração: 08 episódios de aproximadamente 50 Minutos.

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