É comum em alguns escritos sobre cinema tratar-se da dualidade em torno da palavra e da imagem, quase sempre exaltando esta segunda em sobreposição à primeira. Dizem-se que o homem superestima as palavras, deixando de dar atenção a outras formas de comunicação e expressão. Assim, segundo essa visão, a linguagem verbal deve, às vezes, ser um pouco deixada de lado em prol das nuances daquilo que é visto e sugerido. Denis Côté confronta este pensamento em Higiene Social, colocando a palavra numa posição hegemônica, onde a verborragia parece ser a única coisa existente no filme.
Não que a imagem não chame atenção, ela chama; mas é justamente pela sua falta do que dizer. A imagem, aqui, é inerte. O roteiro divide a performance do protagonista em cinco núcleos diferentes. Em cada um deles o protagonista vem acompanhado de uma ou duas pessoas – geralmente apenas uma mulher. Assim surgem longos diálogos entre eles, em que os personagens falam sobre tudo e sobre nada. O enquadramento em cada um desses núcleos sempre permanece estático. O que resta são apenas os personagens enquadrados em planos gerais, cada um em posições rígidas em que pouco se mexem e se mantêm a pelo menos dois metros de distância – o que possui uma relação com a quarentena e seu isolamento social.
Se o cinema é um fluxo de imagens, e aqui a imagem permanece quase sempre presa, então como fica Higiene Social em frente ao cinema? A experiência com o filme remete profundamente ao teatro e à literatura. A obra parece não ocorrer em locações, mas em um palco. O enquadramento aberto, as atuações enfáticas, o minimalismo cênico e a composição de longas falas e monólogos tornam Higiene Social uma produção bastante singular em sua condição cinematográfica. É óbvio que vários outros filmes já exploraram todos esses elementos, mas aqui é um caso extremo: pouquíssimas vezes o cinema esteve tão próximo ao teatro.
O olhar fílmico se forma através do movimento, do andar da decupagem e seus frames. Higiene Social possui um outro olhar (teatral), ele prende o público a uma cadeira em meio a uma plateia e o obriga a ver um palco. Como complemento a isso, há também um forte teor literário que se encontra nos diálogos. Os personagens falam e falam sem parar. Falam de coisas banais, da vida, do outro e do mundo. Tudo isso soa extremamente mecânico e enfadonho, pois a fala, ao passo que é onipresente, perde o seu valor. Vira algo sem substância, impessoal e oca. No final das contas, o espectador acaba ficando sem fôlego e incapaz de digerir tudo que foi dito. O filme fica burocrático pois aquilo que compõe o seu cerne – a palavra, o monólogo e a dialética que cria o diálogo – perde o seu valor.
Antonin, o protagonista, quer fugir do mundo, e tenta usar a retórica como arma para o isolamento. Mas não há modo pior para se buscar um refúgio do que se prender à linguagem e aos conceitos da sociedade como ele faz. Ora, se ele clama por uma certa alienação, por que é justamente dos conceitos da realidade que Antonin tanto usa para combater essa mesma realidade? O melhor modo de se alienar e promover a sua higiene social não seria através do silêncio e do mero ato de romper com essa inércia naquele espaço? Há, claro, uma tentativa de subverter esses conceitos. Os diálogos são recheados de divagações, críticas e uma filosofia performática. Mas nada disso prende a atenção e muito menos chega a ser atraente.
Em dado momento do filme, a esposa de Antonin reclama que ela apenas o chamou para ir a praia, e agora ele está complicando esse simples convite. É isso: Antonin tenta fugir do convívio social estendendo ele próprio, tornando-o artificial. É algo burocrático e monótono, tanto para as personagens que o ouvem falar quanto para o público. E entre cada um desses núcleos com acompanhantes diferentes, há quase que um aspecto onírico de imagens suaves que servem como um “intervalo” ao causarem a transição de uma sequência para outra. O que é justamente o contrário daquilo que há no resto da obra: algo frio que, mesmo se passando numa paisagem natural com amplo horizonte, ainda provoca uma sensação insípida.
Cada mulher que forma um casal com Antonin é visualmente diferente, umas possuem roupas de séculos atrás, outras têm um estilo moderno. E seus respectivos figurinos acabam sendo mais expressivos do que a própria personalidade de todas elas, pois, no final das contas, simplesmente parece não haver qualquer diferença entre elas, mesmo que o conteúdo das conversas tenha sido diferente. Digo sem medo que a maior qualidade de Higiene Social é o seu design de som, que a todo tempo acompanha o filme com sons de pássaros e insetos bastante realistas, o que é agradável de se ouvir e fornece a expressividade necessária a um trabalho tão apegado à concentração dos diálogos mas que, cuja maior virtude, é o som dos animais.
Higiene Social é um jogo de encenação cheio de brincadeiras e provocações entre os personagens. Estes, atuam em alto e bom som, são exagerados na entonação enquanto quase nada se mexem. O que cria um filme de alto teor cômico, mas nada divertido. Temos aqui meio que uma mistura do cinema de Manoel de Oliveira e de Godard. Ambos são bem diferentes, é claro; o primeiro é sereno e discreto, o segundo é gritante e vive brincando com a mise-en-scène. Do cineasta português, Denis Côté puxa a valorização do verbo, a postura teatral e a execução extremamente formal e calculada. Do cinema de Godard, o que existe é o confronto com o cinema, o esquema ensaístico enraizado no texto, subtexto e na forma. Mas infelizmente, embora Denis Côté esbarre nas propostas desses dois diretores, ele, em momento nenhum, atinge a harmonia que aparenta almejar.
Higiene Social (Hygiène Sociale) – Canadá, 2021
Direção: Denis Côté
Roteiro: Denis Côté
Produção: Maxim Gaudette, Éléonore Loiselle, Eve Duranceau, Evelyne Rompré, Kathleen Fortin, Larissa Corriveau
Duração: 75 minutos