Para quem tem filhos, existem pelo menos duas infâncias, a primeira em que os pais são pequenos ainda e a segunda, com seus filhos, já que é necessário e salutar que os pais, já adultos, mergulhem de cabeça na idade de seus seus pequenos até mesmo quando eles saem da infância e caminham para a juventude. E foi assim que, tendo crescido com animações da Hanna-Barbera, tive duas filhas que me fizeram viver uma sucessão de obras guiadas por seus gostos (e os meus também, claro), dentre elas destacando-se iCarly, Hannah Montana e a trilogia High School Musical.
Corta para os dias atuais e eis que a Disney decidiu retornar à franquia 11 anos depois do terceiro filme, como mais um produto de lançamento de seu canal de streaming. Se essa volta a uma obra com “público embutido” não é absolutamente nenhuma novidade na ciranda hollywoodiana, pelo menos a forma escolhida foi original e refrescante, ainda que não sem problemas. No lugar de simplesmente fazer um quarto filme ou uma série que continuasse os eventos anteriores com novo elenco ou algo banal desse jeito, Tim Federle criou uma obra metalinguística que se passa em East High, em Salt Lake City, a escola onde High School Musical foi filmada (os filmes se passam em Albuquerque, porém). Em outras palavras, HSM existe como uma franquia cinematográfica dentro da série que não só é batizada com um excelente título que decidi manter no original em inglês já que em português ele não funciona tão bem, como usa como premissa a montagem de uma peça musical do primeiro filme em East High.
A catalisadora dessa ideia é Miss Jenn (Kate Reinders), a recém-contratada professora de dramaturgia que passa, então, a fazer audições para escolher o elenco da peça, o que, claro, é o ambiente perfeito para todo o tipo de drama adolescente – e também adulto – que vai sendo construído aos poucos durante os 10 curtos episódios da 1ª temporada. Curiosamente, porém, os protagonistas Olivia Rodrigo e Joshua Bassett, que vivem, respectivamente, Nini Salazar-Roberts e Ricky Bowen e que são escolhidos para viverem Gabriella Montez e Troy Bolton em meio a uma disputa com Gina Porter (Sofia Wylie) e E. J. Caswell (Matt Cornett), que, por sua vez, acabam escalados como Taylor McKessie e Chad Danforth, são extremamente desinteressantes não só em razão dos dois jovens atores, mas também e talvez principalmente pela construção de seus papeis.
Rodrigo e Bassett carecem de química, de qualidades dramatúrgicas básicas, o que os faz destoar do restante do elenco. Mas esse nem é o pior problema, pois os roteiros não ajudam com todo o drama ao redor deles sobre quem namora com quem, quem canta músicas melosas para o outro e, principalmente, o quanto a separação dos pais afeta Ricky, que deveria ser crescidinho o suficiente para não lidar com tudo como se fosse uma criança de oito anos de idade. Cheguei até a ficar pensando como uma série poderia funcionar apesar da dupla principal, mas a grande verdade é que ela realmente funciona, ainda que, claro, fique um claro “buraco” onde atores mais competentes e personagens com construção mais eficiente deveriam estar.
E o que faz High School Musical: The Musical: The Series engrenar mesmo que fechemos os olhos para Nini e Ricky, é a maneira reverente com que os roteiros lidam com a “mística” de East High ser a escolha onde HMS foi filmado e o bom uso do elenco de apoio, começando pelos já citados Kate Reinders como Miss Jenn, Sofia Wylie como Gina (essa garota tem futuro) e Matt Cornett como E.J., passando pelo excelente e engraçado Frankie Rodriguez como Carlos Rodriguez, o coreógrafo do musical, Larry Saperstein como o tímido Big Red, melhor amigo de Ricky que acaba sendo o faz-tudo da produção, a sensacional Julia Lester como Ashlyn Caswell, prima de E.J. que acaba escalada como Miss Darbus (e que fica igualzinha a ela, em uma transformação muito bem feita) e Dara Reneé como a simpática e ativa Kourtney, melhor amiga de Nini que vive a figurinista da peça e chegando até mesmo nos coadjuvantes menores, com pouco tempo de tela, como é o caso de Joe Serafini como Seb Matthew-Smith que, inusitadamente, é escalado como ninguém menos do que Sharpay em um gender-bender bem sacado (e que deveria ter tido mais destaque no desenrolar da série) e Mark St. Cyr como o Sr. Benjamin Mazzara, professor de ciência e tecnologia que é contra a montagem da peça.
Em outras palavras, pode-se dizer que HSMTMTS tem um elenco de suporte tão bom e tão azeitado dentro dos propósitos da narrativa que seus protagonistas “água de chuchu” são engolidos completamente e, de certa forma, melhorados por aqueles que gravitam ao seu redor. E olha que talvez, com um roteiro melhor e menos perdido em idas e vinda desnecessárias, talvez Rodrigo e Bassett conseguissem algo mais eficiente do que acabam mostrando, mas isso ficará para eles provarem, se tiverem chance, na próxima temporada.
A direção no estilo mockumentary, que força câmera tremida quase 100% da duração, é completamente desnecessária e poderia ser extirpada no futuro, já que só serve para chamar atenção para si mesma, sem acrescentar nada à série que funciona muito bem como uma série de ficção, sem precisar recorrer a esse suposto realismo empurrado goela abaixo. Pelo menos a fotografia mantém o estilo televisivo original, com um bom design de produção que faz questão de atualizar os cenários sem que a verdadeira East High perca a identidade da East High da ficção. E, se o roteiro é cambaleante – algo que pode ter relação com a troca de showrunners a partir do quinto episódio -, as canções novas têm peso e consequência, não parecendo apenas algo escrito para trazer novidades sem maiores preocupações, valendo especial destaque para Wondering, composta por Ashlyn dentro da própria estrutura narrativa e cantada pela atriz em performance diegética por duas vezes.
Seja como for, mesmo cambaleante e cheia de altos e baixos, a série consegue sair-se bem como uma bela homenagem a um filme despretensioso que, surpreendentemente, marcou uma geração e também como uma obra que consegue ter suficiente vida própria, ainda que, claro, muito conectada ao material original. Agora é torcer para que, no segundo ano, Tim Federle consiga lidar melhor com seus protagonistas e criar uma história macro talvez mais objetiva e direta, sem as gordurinhas que muito claramente estão presentes aqui, o que pode tornar HSMTMTS tão marcante para a geração atual quanto HSM foi para a anterior.
High School Musical: The Musical: The Series (EUA, 08 de novembro de 2019 a 10 de janeiro de 2020 – transmissão original; 17 de novembro de 2020 a 15 de janeiro de 2021 – Brasil)
Criação: Tim Federle
Showrunner: Oliver Goldstick (1X01 a 1X04), Tim Federle (1X05 a 1X10)
Direção: Tamra Davis, Chad Lowe, Joanna Kerns, Kimberly McCullough, Kabir Akhtar
Roteiro: Tim Federle, Oliver Goldstick, Zach Dodes, Margee Magee, Ann Kim, Natalia Castells-Esquivel
Elenco: Olivia Rodrigo, Joshua Bassett, Matt Cornett, Sofia Wylie, Larry Saperstein, Julia Lester, Dara Reneé, Frankie Rodriguez, Mark St. Cyr, Kate Reinders, Joe Serafini, Alexis Nelis, Nicole Sullivan, Jeanne Sakata, Alex Quijano, Valente Rodriguez, Beth Lacke, Kaycee Stroh, Lucas Grabeel
Duração: 341 min. (10 episódios)