Ari Aster não acredita que Hereditário seja um filme de terror. O diretor do que vem sendo chamado de “a experiência mais aterrorizante desde O Exorcista” negligencia os rótulos e não se prende a gêneros, mas diversas vezes volta-se para o horror para despertar as imagens mais interessantes de seu filme de estreia.
Graças ao histórico da A24, já era esperado um produto que fugisse da zona de conforto do terror, sem abusar de clichês e que buscasse “algo a mais”. A produtora nos últimos anos emplacou sucessos como A Bruxa e A Ghost Story, que por mais que partissem de um ponto como histórias de bruxaria ou fantasmas, achavam suas soluções fora do gênero, decepcionando alguns espectadores e maravilhando outros. Jamais direi o que é certo ou errado dentro do cinema, mas muitas vezes novos cineastas tentam justificar o filme que fazem a partir de um discurso à parte. Não que clássicos do horror sejam insuficientes em subversão. Mesmo que tardiamente reavaliados, Tobe Hooper, John Carpenter e Joe Dante mostraram-se dos mais políticos cineastas americanos sem nunca ter saído do cinema de gênero.
O que acontece no novo cenário independente é a procura de validar-se artisticamente transcendendo o gênero, como se essa pretensão fosse garantia de qualidade. Deixar de lado os ‘maneirismos chulos do cinema clássico’ para enfim ‘tornar-se arte de verdade’, sem qualquer vulgaridade. O chamado pós-horror, é uma maneira de afastar-se de algo que aparentemente não tem valor algum, um elitismo cultural que deprecia o terror e tenta gerar um ramo prestigiado por prefixos na sétima arte.
Hereditário também foi vendido como um filme com “algo a mais”. O grande objeto de interesse é a disfuncionalidade daquela família que lida com a perda da avó. São interpretações que explodem com muita facilidade, que vão do robótico ao overacting com muita facilidade, justamente por serem personagens rasos — uma mãe passando por uma fase difícil, um pai sem voz, um filho adolescente que só pensa em impressionar a garota que gosta, e a estranha porém talentosa filha mais nova. Agem de forma anormal, como se não fossem uma família de verdade, e só no turbilhão de emoções liberam o que talvez seja o único elo entre eles: a repulsa.
Ao se esclarecer no aspecto sobrenatural, é revelada uma ótima trama para um filme de terror, mas que infelizmente é sempre deixada de lado, como se Aster tivesse medo das próprias imagens. São planos sempre higienizados e calculados; a história é varrida pra debaixo do tapete para que o diretor possa tratar tudo com a ‘limpidez que um filme de verdade merece’. Mesmo quando algo de aterrorizante acontece são apenas respiros de interesse numa história que foca muito mais na tragédia familiar que nos momentos terror, que acabam tornando-se easter-eggs, uma trama escondida para que apenas o mais atento espectador possa compreender e logo em seguida montar um argumento explicando a obra.
Há de fato um grande conto envolvendo misticismo, religião e demonologia, mas é tratada com desprezo e vontade de tornar tudo em algo aberto à interpretações. Parece que mesmo os grandes momentos iconográficos estão lá apenas para servir de metáfora, não para compor a imersão do horror. São instantes conscientes de um diretor que tenta emular de forma já irônica os clichês do gênero, porém de modo prepotente e exibicionista e não de peito aberto.
É uma infelicidade que Aster tenha creditado seu filme como “muito mais que horror”, porque é justamente nas ocasiões que o terror fica aparente que se percebe o talento do diretor. Por trás de todos os diálogos desumanizados e tentativas de esconder o que devia ser mostrado, há um grande filme que funcionaria muito bem caso feito por um diretor que sabe sujar as mãos em nome do próprio cinema, sem vergonha de ser terror. Sem esnobar o gênero.
Hereditário (Hereditary) — EUA, 2018
Direção: Ari Aster
Roteiro: Ari Aster
Elenco: Alex Wolff, Gabriel Byrne, Toni Collette, Milly Shapiro, Christy Summerhays, Morgan Lund, Mallory Bechtel, Jake Brown, Harrison Nell, BriAnn Rachele, Heidi Méndez, Moises L. Tovar, Jarrod Phillips, Ann Dowd, Brock McKinney
Duração: 127 min.