Austrália, década de 1880. Com a morte de seu pai, Jim (Tom Burlinson, em sua estreia em longas-metragens) é forçado a descer das montanhas onde mora para trabalhar no rancho de gado de Harrison (Kirk Douglas, aqui interpretando dois papéis), em algo parecido com um ritual de passagem, no qual ele deve ter um emprego, “fazer por merecer” estar nas montanas e, diante do valor mostrado entre os adultos do rancho, se tornar um homem.
Baseado no poema The Man from Snowy River, de A.B. ‘Banjo’ Paterson, publicado pela primeira vez em 1890 e em um contexto de mudanças culturais na Austrália, quando a ideia de um herói nacional representava a identidade daquele povo frente aos britânicos, este Meat Pie Western de George Miller (curiosamente, o escocês, diretor de A História Sem Fim II; não o australiano, diretor da franquia Mad Max) tem uma série de boas ideias e um teor heroico e romântico que mesmo destoando da trama geral, possuem charme. O que realmente contribui para estragar a história, ainda mais que o roteiro, é a trilha sonora e a montagem.
George Miller explora desde cedo as locações no Estado de Victoria, Austrália, dando um excelente contexto geográfico para o jovem herói (ou futuro herói), como um desbravador de um território selvagem cheio de cavalos selvagens e pessoas selvagens. Há uma enorme beleza nos animais e regiões filmadas, apesar das limitações de movimento da câmera. A fotografia tem ideias muito boas ao fazer tomadas do crepúsculo e em cenas noturnas, onde realmente podemos notar a qualidade do trabalho de Keith Wagstaff. Mas é quando o espectador está gostando do desenvolvimento do enredo diante das dificuldades familiares de Jim, em contato com um excelente Kirk Douglas em seus dois papéis, o diretor começa a abusar do zoom, e o ritual de passagem do herói e as questões de família ou amorosas começam a se confundir.
O exagero de Miller no uso do zoom poderia ser corrigido na pós-produção do filme, na mesa de montagem de Adrian Carr, mas não é isso que acontece. Ele insiste em manter essas aproximações artificiais e ridículas de um grande plano geral para um plano médio e comete pecados imperdoáveis como congelar imagem mais de uma vez, desprezar alguns raccords de movimento, especialmente nas cenas com os cavalos, talvez para adicionar um ar mais “místico” à presença desses animais em cena (quanto a isso, o roteiro e o diretor também levam igual culpa) e acabar tornando alguns momentos da obra encaixados de forma abrupta e não harmoniosa. Mas ainda é possível piorar. E esse maior passo para o lamaçal vem com a trilha sonora de Bruce Rowland.
Mais uma vez, a culpa aqui é compartilhada, tendo o diretor aprovado a partitura final e utilizado a perder de vista uma trilha invasiva, praticamente composta para paisagens bonitas de karaokê e que tornam momentos que poderiam ter um outro nível de beleza ou maior harmonia entre homem e natureza, apenas um momento barato de cavalgadas elogiáveis e paisagens estonteantes. Juntas, montagem e trilha sonora desequilibram Herança de um Valente de tal modo que o espectador só mantém o interesse pelo filme devido à história instigante — deslocada do ambiente mais comum com esses acontecimentos (o western americano) –, pela forte presença de Kirk Douglas no elenco e por dramas de significado maior do que aparentam ter.
Existem filmes onde setores menos esperados acabam tendo grande destaque e melhorando inesperadamente a obra. Em Herança de um Valente, ocorre o contrário, esse destaque não é positivo e custa ao filme metade de seus erros. Ainda assim, o público tem neste longa uma boa e um pouco improvável jornada que mantém sua curiosidade viva. O filme teve um grande impacto diante do público australiano e ganhou até uma sequência, considerada notavelmente inferior à obra original. O que nos fica é a pergunta se nossa percepção geral da fita seria melhor se houvesse menos música e melhor mixagem de som, menos zoom e melhor montagem. Do jeito que a obra nos foi entregue, ela só tem simpatia. Mas não deixa de ser bastante medíocre.
Herança de um Valente (The Man from Snowy River) — Austrália, 1982
Direção: George Miller (não confundir com George Miller, diretor de Mad Max)
Roteiro: John Dixon, Cul Cullen (baseado em um poema de A.B. ‘Banjo’ Paterson)
Elenco: Tom Burlinson, Terence Donovan, Kirk Douglas, Tommy Dysart, Bruce Kerr, David Bradshaw, Sigrid Thornton, Jack Thompson, Tony Bonner, June Jago, Chris Haywood
Duração: 102 min.