Para quem, assim como eu, tinha achado Um Passo Adiante um volume “pesado” de Heartstopper, acabou se deparando com algo bastante intenso e ainda mais marcante e tocante aqui em De Mãos Dadas, o quarto livro da série em quadrinhos. De certa forma, a roteirista e desenhista Alice Oseman não dedica tempo introduzindo novas questões ou apresentando novos horizontes para serem desbravados pelos personagens. O que ela faz aqui é dar o máximo de atenção possível para algo que apareceu no terceiro volume e que não tinha recebido um verdadeiro desenvolvimento. Eu gostei muito da cena em que todos se preocuparam com o Charlie por conta do desmaio em Paris, onde a sua questão com a alimentação foi levantada tangencialmente por Nick, e confesso que não esperava que a autora fosse voltar com tudo a esse tema — e outros problemas correlatos — com a verdadeira atenção e cuidado que ele merece.
Estamos alguns meses depois da viagem da turma para a França e, como era de se esperar, muita coisa está mudando na vida pessoal e escolar da galera. O primeiro arco a ser tratado aqui é o aprofundamento da relação entre os protagonistas, com Charlie às voltas com uma questão que sempre intriga qualquer um no início de um relacionamento: quando é o momento certo para dizer “eu te amo” a uma outra pessoa? Há sempre muita coisa para se considerar nessas ocasiões, e é perfeitamente compreensível o dilema de Charlie aqui. Ele tem uma cena muito bonita ao lado de Tori e Oliver, logo na abertura da graphic novel, onde a semente desse assunto é lançada. É um momento muito bacana entre irmãos, com Oliver trazendo toda a fofura inocente de uma criança e Tori conversando com Charlie a respeito desse dilema do amor.
A ligação com o bloco de ação seguinte é feita de maneira direta, orgânica e, como sempre, adorável. Desde o início é estabelecido que Charlie irá passar um dia na praia com Nick e mais alguns amigos (o “Esquadrão de Paris”, grupo que na verdade recebe vários nomes ao longo da edição), e é durante essa tarde de divertimento que duas coisas irão ganhar a escalada que definirá o restante do volume. A primeira delas é o estresse de Charlie ao pensar constantemente em como dizer para o namorado que o ama. Isso faz com que ele passe a rejeitar cada vez mais comida, o que coloca Nick em estado de alerta e a primeira conversa mais direta e séria sobre anorexia e distúrbio alimentar em geral aparece na edição. Quando a questão do “eu te amo” se revolve — de uma forma muito bonita, com a cara desajeitada e charmosa que já esperamos vir desse casal — o texto passa abordar outras coisas, num timing que, durante a leitura, já me pareceu bem angustiante: uma crise de distúrbio alimentar ataque Charlie durante o período em que Nick está passando férias com a família em Minorca, uma das ilhas baleares da Espanha.
Aliado a alguns problemas de relacionamento entre Charlie e a mãe (coisa típica da adolescência), a segunda parte de De Mãos Dadas é inteiramente dedicada à saúde mental de Charlie e à companhia de Nick durante esse processo de identificação do problema, busca por ajuda profissional e observação dos avanços com o passar do tempo. Em termos narrativos, acaba sendo uma metade muito burocrática, consideravelmente diferente daquilo que a gente tinha tido até então na série, e não digo isso de forma positiva. A questão, porém, é muito séria e entendo a escolha da autora pela representação mais detalhada, lenta e “oficial” em relação aos Distúrbio Obsessivo-Compulsivo de Charlie e de sua questão com a comida. Evidente que, paralelo a essa jornada, o roteiro elenca cenas de grande carinho entre os protagonistas, mostra o papel dos amigos no processo de cura e também mostra que uma visita a um terapeuta ou mesmo algumas semanas de internação não são o bastante para exterminar desarranjos mentais ou comportamentais. Este é um processo lento e que, em alguns casos, precisará ser levado para a vida.
A cena final do volume me deixou roendo as unhas, porque nos deixa num cliffhanger tenso, não mais ligado a Charlie, mas a Nick. Eu tinha comentado no volume anterior o tormento que é ter preconceito dentro de casa (aqui também descobrimos que Darcy passa por isso no seu dia a dia, e por maus tratos mesmo, não só em relação à sua sexualidade), e Alice Oseman corrobora essa ideia na cena final do livro. Para Charlie, todo esse bloco da narrativa é de cura de suas questões mentais. Isso faz com que ele também perceba o quanto o relacionamento dele com Nick evoluiu e se fortaleceu e o quanto as pessoas ao seu redor fazem parte do processo de recuperação: amigos, professores, familiares e animais de estimação. Em casos assim, ter boas companhias, estar cercado por pessoas que se importam com sua saúde já é meio caminho andado para o processo de cura.
Aqui também temos algumas mini histórias das quais apenas duas realmente valem a pena citar (porque são as únicas realmente boas) e dizem coisas importantes para a série. Uma delas se passa em algum momento do futuro e é uma crônica sobre o corte de cabelo de Charlie. A outra é uma cena envolvendo os professores Nathan Ajayi e Youssef Farouk, que por mim ganhavam uma série só deles. Um tanto diferente no encadeamento do roteiro, De Mãos Dadas aborda temas muito pesados e muito sérios presentes em diversas vidas de jovens e adultos no mundo todo, e toda essa abordagem é feita com muito cuidado e constantes indicações de uma busca por ajuda por profissionais que realmente poderão fazer algo por quem sofre. É como dizia o maior e melhor escritor brasileiro: “Viver é muito perigoso… Porque aprender a viver é que é o viver mesmo… Travessia perigosa, mas é a da vida“. Neste volume, a gente acompanha alguns desses perigos da vida e notamos que entre a tempestade e a bonança em Heartstopper, a única coisa que não muda é a nossa vontade absurda de continuar protegendo Nick e Charlie a todo custo.
Heartstopper – Vol.4: De Mãos Dadas (Heartstopper: Volume Four) — Reino Unido
Roteiro: Alice Oseman
Arte: Alice Oseman
Editora original: Hachette Children’s Group, 6 de maio de 2021.
No Brasil: Editora Seguinte, 2022
384 páginas