Tudo o que Alice Oseman não colocou nos volumes anteriores em termos de obstáculos na vida dos personagens, apareceu como uma grande coletânea aqui em Um Passo Adiante, terceiro livro da série em quadrinhos Heartstopper. Se formos olhar para a organização dos tomos anteriores, entendemos que Dois Garotos, Um Encontro é uma trama de apresentação de personagens e cenários, do estabelecimento de algumas problemáticas que seriam melhor trabalhadas adiante. Nesse caso, o encontro entre Nick e Charlie assume o protagonismo do enredo e temos também o estabelecimento de um chão para os coadjuvantes, que igualmente receberiam mais atenção em livros posteriores. Já Minha Pessoa Favorita carrega um tom mais sério, firma o compromisso entre o casal central e começa a desenvolver, de verdade, os dilemas de um relacionamento, em todos os seus aspectos. E então damos um passo adiante e vemos que alguns problemas escondidos podem reaparecer em cenários aparentemente já bem resolvidos.
É importante deixar claro que a mudança de tom neste terceiro volume está na maneira como a autora adiciona mais problemas na vida de Nick e Charlie e de seus amigos mais próximos (em comparação à quantidade de problemas dos dois livros anteriores), considerando agora que todos vivem um momento de fofuras e delícias em suas vidas ao lado das pessoas que gostam. É uma progressão narrativamente natural e acredito que Oseman ponderou bastante esse tipo de elenco de problemas, tanto que, ao longo de toda narrativa, vemos como ela vai escolhendo blocos de enfrentamento de cada um com suas questões, seus demônios, seus impasses do dia a vida. A mensagem de esperança e amor permanece, mas como estamos um tempo à frente desde o momento em que começamos a acompanhar esses personagens, vemos agora muitos sinais de mudanças comuns que a vida de todo adolescente tem e as responsabilidades que precisam ter confirme isso acontece.
Não existe, portanto, um “problema central” aqui, como aconteceu anteriormente. O primeiro grande impacto que vemos é o retorno do irmão de Nick da faculdade e a maneira completamente homofóbica, desrespeitosa e desumana como lida com a bissexualidade do irmão. Aliás, todos os preconceitos básicos que esse indivíduo possui são os preconceitos que qualquer pessoa que não entende a bissexualidade reproduzem. Ideias como “é só uma fase” ou “não tem coragem de se assumir gay” são proferidas para Nick, que no mesmo período está tentando ganhar coragem para dizer às pessoas que importam que está namorando Charlie. Não só a realista e bem dosada representação desse problema é colocada no momento certo da trama, como a forma como ela é enfrentada e integrada à vida de Nick merece todos os aplausos possíveis. Aqui, não estamos falando de uma ameaça externa. Não estamos falando de um perigo em um lugar fora de casa, que se pode ignorar por algumas horas do dia. E mesmo que a maioria dos perigos de preconceito dentro de casa não ofereçam risco de morte aos LGBT que passam por eles (note bem: a maioria, não a totalidade, como infelizmente sabemos pelos noticiários), acabam sendo um inferno ainda maior porque é o tipo de tormento do qual não se consegue fugir.
E é nessa esteira que a autora entra de verdade em uma das discussões mais necessárias quando se trata de sexualidade fora do modelo normativo: a questão do “sair do armário“. Primeiro ela discute o mito impositivo de que é necessário realizar esta saída. Depois, discute os termos daquilo que a gente entende socialmente por “assumir-se”, trazendo à reflexão o fato de que se trata de uma decisão pessoal, inteiramente condicionada ao tempo particular de cada um e que só deve acontecer se a pessoa quiser e se sentir-se confortável em fazer isso para alguém ou um grupo. Colocar-se no mundo é também abrir espaço para rótulos (ninguém gosta deles, mas a gente sabe que viver em sociedade é ser rotulado e rotular os outros; faz parte da forma como nos organizamos como civilização — e sim, isso pode ser controlado de maneira humana e os rótulos podem ser ressignificados e não existirem apenas como um dos meios de opressão, mas de identificação, se necessário) e lidar com os obstáculos advindos dessa identidade pública. E mais: a edição também discute a ideia de sair dezenas, centenas de vezes do armário ao longo da vida, porque a cada novo grupo, espaço ocupado, contatos estabelecidos, essa “revelação” aparentemente irá surgir, justamente pelo contraste à versão normativa da sexualidade. E ainda tem gente no mundo que acredita em algo chamado “ditadura gay“. Existe, sim, uma ditadura organizacional em termos de percepção, aceitação e comportamento de massa diante da sexualidade. Mas ela definitivamente não é gay ou de nenhuma outra letra do alfabeto queer, isso é fato.
A viagem para Paris é o ponto alto da edição. São tantos acontecimentos e tantas questões levantadas que chega a espantar. Gosto muito de como a questão do sexo é levantada: estar preparado para transar é algo muito importante e isso tem que vir das duas partes do casal. As pegações de Nick e Charlie acabam levando os dois para essa conversa (são adolescentes do Ensino Médio, não tem como não falar de sexo!) e ambos colocam o pé no freio em dado momento do contato físico porque não sentem que é o momento de transarem. Além disso, o texto também reflete sobre questões mentais e emocionais, falando abertamente sobre o distúrbio alimentar de Charlie (é de doer o coração lendo ele falar sobre essa ideia de que a comida “é a única coisa sobre a qual ele tem controle“), dos episódios depressivos e ansiosos que levaram-no a se cortar e de como ele e Nick lidam com essas informações, dividindo um com o outro o peso e tentando encontrar um refúgio, uma solução — Nick, aliás, é um anjo: a preocupação dele com Charlie, o fato de ser um grande observador e procurar ajudar o namorado é comovente.
Por fim, temos mais uma aspecto de relações interpessoais que inicialmente se expande para o romance entre Tao e Elle e depois para o afastamento do pai de Nick em relação ao filho. O problema de comunicação, a frieza do pai, tudo isso entra em cena e é abordado ao longo da viagem, sem contar a fagulha (fofa e inesperada) que se acende entre dois professores do colégio. Um Passo Adiante é o volume mais realista, mais denso e mais marcante da série até o momento. E me faz mais uma vez repetir o quão incrível é Alice Oseman por trabalhar tantas coisas sérias e pesadas sem fazer de sua graphic novel um poço de horrores, prostração absoluta e danação sem fim. A vida desses adolescentes não é perfeita; assim como não é perfeita a vida de ninguém. O diferencial desse título é o olhar que tem para esses maus momentos e a tentativa de encontrar uma linha saudável de costura (não existe equilíbrio: apenas a tentativa de não se desequilibrar tanto, de não cair em excessos) que mantenha, pelo menos, um pouco de paz e esperança, fazendo alguma coisa para que amanhã seja melhor que hoje.
Heartstopper – Vol.3: Um Passo Adiante (Heartstopper: Volume Three) — Reino Unido
Roteiro: Alice Oseman
Arte: Alice Oseman
Editora original: Hachette Children’s Group, 6 de fevereiro de 2020.
No Brasil: Editora Seguinte, 2021
384 páginas