Diante dos recorrentes cancelamentos, e com a recente nota sobre a queda de assinantes, a Netflix emplaca com uma nova produção que coloca essa poeira toda de lado e abre espaço para atingir o público de maneira avassaladora. E esse sentimento vem carregado logo no título, Heartstopper, algo sobre se sentir maravilhado, contagiado, atordoado, sem palavras; a comoção intensa que emana da relação de seus personagens. Tal emoção explode também no primeiro contato que se faz com a adaptação da graphic novel LGBTQIA+ homônima de Alice Oseman, graças a autenticidade que se concebe; no cuidado de transportar essa poderosa história para as telinhas.
É o familiar coming of age, um completo clichê; mas um clichê que cai bem e acerta em cheio, tão sensivelmente conduzido que se faz original e não tem vez: fisga e aquece o coração de um jeito afetuoso e encantador. Certamente, essa essência só foi capaz justamente por contar com a criação de Oseman, que também atua como roteirista e produtora da atração, e de cara, a autora trabalhou dois dos quatro volumes das HQs, além de adiantar alguns arcos do terceiro. Tornando o pacote quase perfeito, as alterações das páginas para a série foram mínimas, trazendo pérolas como o “62% de homossexualidade“, o resultado aqui é mais do que satisfatório e se torna uma tarefa difícil até para os exigentes criticar.
O que há de tão imenso nessa série começa na improvável amizade entre Charlie (Joe Locke) e Nick (Kit Connor) no colégio. Tímido, inseguro e apaixonante, o jovem Charlie está lidando com uma nova fase, se recuperando depois de ter sua orientação sexual hostilizada por bullyings da instituição. Já Nick, é um prestigiado e popular jogador de rugby que carrega toda essa bolha de aprovação por status enquanto detém dúvidas acerca de sua heterossexualidade ao conhecer seu novo parceiro de classe. Mas o que acontece quando a amizade floresce para um lugar de paixão e muitas outras descobertas? Heartstopper poderia muito bem ser como qualquer história semelhante que visa falar sobre o amadurecimento, o encontro de almas e aceitação, mas Oseman preza por uma abordagem tão única de sua história que compõe cada momento de forma excepcional; tão ímpar que se faz duradoura pela simplicidade, ternura e sensibilidade, e que ganha ainda mais intensidade com os efeitos visuais emulando a estética marcante das ilustrações da escritora. E é nisso que se concentra a natureza da série: a emoção que faz sentir.
A liberdade dada pela Netflix, permitindo a Oseman boa parte do controle da série, se mostra uma proveitosa escolha, colocando a atração como uma das mais edificantes e pontuais para o gênero na plataforma. Aqui a autora teve a chance de unificar o que se estendeu em três volumes dos quadrinhos e estabeleceu o que faria do seu show um diferencial para as histórias de autodescoberta e romance para o público LGBTQIA+, ao criar um retrato abrangente e acolhedor. De forma geral, o foco em Heartstopper foi trabalhar numa ótica mais otimista, mas sem se isentar de que há um lado negativo que precisa ser discutido; a homofobia, o cenário conflituoso da Internet, por exemplo, estão lá, contudo, não ganham espaço para sufocar a narrativa alegre e adocicada, onde seria jogada numa disforia, recebendo um balde de água fria para então render o típico cliffhanger.
Com isso, não é como se Oseman arrumasse uma fórmula em que pinta um quadro todo colorido onde tudo parece mais fácil, mas sim que desenvolveu uma abordagem empenhada em apontar um lado mais positivo de sua história. O contraste de tom, entre equilibrar os arcos mais delicados e não se desprender de sua nuvem de leveza, pode ser percebida logo na cena inicial da série quando Charlie é apresentado à sombra de um relacionamento agressivo, depois, ao avistar Nick, propositalmente, uma luz reflete um arco-íris que o separam a poucos metros na classe. O momento é direto e ilumina para algo bom surgindo “após a tempestade” entre Charles e Ben (Sebastian Croft). Mas não é por sua tenuidade que Heartstopper suaviza esse plot e muito pelo que a coincidência possibilitaria, claro; Ben é um personagem que espelha a masculinidade tóxica e reproduz um comportamento hostil e opressor, e Oseman firma seu estilo maduro de trabalhar com temas ao explorar esse ponto de forma a encontrar resoluções satisfatórias e realistas sem recorrer a facilitações, que colocariam Ben naquele lugar de humanizar babaca graças ao poder de uma frase perfeitinha.
Além da emoção que genuinamente flui no ritmo e narrativa, o que completa o show, é a maneira com que Oseman valoriza todos os personagens numa sinergia contagiante e gostosa de acompanhar o desenrolar dessas histórias. É ao trabalhar com esmero os coadjuvantes que o leque de discussão é expandido e a autora cria essa composição confortável. Para Charlie, conhecer Nick lhe abre a chance para uma relação saudável com alguém que o faz se sentir solto, aparado, embora com suas inseguranças arranhando o tempo todo. Contemplar essa união pulsante é só uma das partes que formam o coração de Heartstopper, que sela sua graciosidade ao permitir tantos diálogos de modo sensível e leve.
Ser abertamente gay em uma escola predominante masculina só foi possível para Charlie graças ao apoio que recebe do inseparável grupo de amigos formado por Elle (Yasmin Finney), Tao (William Gal) e Isaac (Tobie Donovan), e essa bolha acolhedora também se amplia para Nick que se entende como bissexual, está completamente imerso de amor por Charlie, mas sofre com a pressão de ser um grande atleta e de descobrir a melhor forma de sair do armário e não se magoar no caminho. Em paralelo a isso, na escola vizinha só para meninas, Tara (Corinna Brown) e Darcy (Kizzy Edgell) também estão lutando pela aceitação, apesar de que estejam numa relação há mais tempo. Aí é onde entra o arco de Elle, que encontra no novo cenário escolar um vínculo que a antiga unidade não lhe permitia como uma garota trans e pelo comprimento de seu cabelo. Nesse conjunto de experiências, em que aprendem e aconselham, que Heartstopper conduz falar sobre o espectro da aceitação, afago e conforto com um enfoque sensato, sem soar como estivesse correspondendo à ideia de que é tendência ter um show diverso, e sim, na maturidade de contar e celebrar essas histórias.
Quando Heartstopper é caracterizada como diferencial, é muito pela recusa de Oseman em retratar essa história numa zona comum ao valorizar uma composição que versa sobre sentimentos de forma como se estivesse constantemente fluindo em plenitude. Evitando os frequentes retratos de tensão sexual em séries teens, a série mais se preocupa em transmitir nos seus personagens o enaltecimento de estimar e curtir uma companhia, a troca de olhares, a sensação prazerosa de estar com quem se gosta, de perguntar o corriqueiro “como foi seu dia?” e dizer coisas bobas e rir disso. A maneira como cada um se entende e interage é única, onde os detalhes elevam tal construção, mas um exemplo do cuidado dessa retração foi na bela cena em que Nick apenas quis segurar a mão de Charlie, e os efeitos visuais emulando o calor, o choque, a imensidão do pequeno gesto para demonstrar carinho. E são nessas amostras que a série reverbera a magia por trás do seu título: a emoção carregada em qualquer momento que propõe.
Se Heartstopper terminasse aqui, com apenas oito episódios, não lhe tiraria o mérito de ser efetivamente um programa com efeito raro de conversar e acolher de forma plena, mostrando que essa é a comunicação que move, principalmente no âmbito familiar, além de um final esperançoso. Mas também, ninguém quer ver essa história acabar por aqui quando se tem ainda muito para contar, e o plano de Oseman é seguir até a quarta temporada, onde finalizaria de forma fechada os quadrinhos que ainda também desenvolve. Isso significa que os personagens poderão voltar e fazerem de novo o efeito Heartstopper: como faz você se sentir.
Heartstopper (Reino Unido, 2022)
Criação: Alice Oseman
Roteiro: Alice Oseman
Direção: Euros Lyn
Elenco: Joe Locke, Kit Connor, Yasmin Finney, William Gao, Corinna Brown, Kizzy Edgell, Jenny Walser, Tobie Donovan, Olivia Colman
Duração: 29 a 33 minutos (8 episódios, cada)