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Crítica | Harvest (2024)

Os frutos da mudança.

por Luiz Santiago
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O mundo que nos é apresentado nas cenas iniciais de Harvest (2024) é um paraíso em seus últimos dias de vida. Nós o conhecemos através da percepção quase embriagada de Walter Thirsk (Caleb Landry Jones), a quem a câmera acompanha aparentemente sem propósito, vagando pelos campos, tomando banho no lago, integrando-se com a natureza. É uma abertura fria, sem falas, estabelecendo a propriedade onde toda a trama irá decorrer, além de marcar as características emotivas de Walter, que logo terá um choque, ao retornar para casa e se deparar com o incêndio criminoso no celeiro de Mestre Kent (Harry Melling), o viúvo que herdou da esposa toda a propriedade e que tenta conviver com os trabalhadores da forma mais respeitosa e justa possível. 

O roteiro de Harvest é baseado no livro homônimo de Jim Crace, obra que explora o grande fluxo de consciência do protagonista, que narra eventos que sequer presenciou. Na versão cinematográfica, a diretora Athina Rachel Tsangari precisou criar uma ponte entre o afastamento e a presença de Walter na propriedade, ao mesmo tempo que ergueu um cenário misturando ingredientes do horror folclórico com a História da Grã-Bretanha a partir do século XVI, durante o período Tudor. Como consequência histórica, foram exercidos os direitos legais de propriedade sobre as terras que antes eram mantidas em comum, na Inglaterra e no País de Gales, ou seja, campos abertos e terras comunitárias; forçando milhares de camponeses a migrarem para as cidades e transformando os campos em pastos simples para ovelhas, cuja lã iria abastecer a indústria têxtil do país e cujas árvores nativas ou plantadas serviriam para lenha.

A atmosfera de Harvest é, portanto, múltipla de significados. A vida difícil do servo é explorada, ao mesmo tempo que se deixa claro o compartilhamento de terras e as negociações com o Senhor para obtenção de parte da colheita e dos filhotes nascidos dos rebanhos — em outras palavras, uma relação econômica similar àquelas que conhecemos do feudalismo europeu. Com a formalização mais bojuda do capitalismo como sistema, no século XVII (antes de sua plena execução prática, durante a Revolução Industrial Inglesa, um século depois), essa relação antiga entre produção e lucro é rapidamente superada, em prol de uma atividade simples, com menos trabalhadores, exploração progressivamente nociva da terra e precarização da vida das pessoas que dependiam da agricultura e da pecuária familiar para sobreviver, nos dois sentidos do termo (alimento e dinheiro).

O rápido avanço dos eventos desse filme nos dá a sensação de uma Era inteira da história sendo devorada em poucos dias. E no processo, temos a oportunidade ver de tudo: rituais de caráter politeísta festejando a boa colheita; pessoas presas no pelourinho; acusações de bruxaria e execução de “atos mágicos”; exercício da lei para incendiários e assassinos em propriedades isoladas; mapeamento territorial para fins lucrativos; política de cercamentos; bem como violências e preconceitos comuns do período histórico retratado. É uma cápsula do tempo muito bem dirigida, com uma fotografia que se aproxima das pinturas vivas (muitas cenas aqui são verdadeiros quadros bucólicos), e uma história que pode ser replicada em milhares de outras propriedades, embora nem sempre com os camponeses saindo vivos do local. 

Harvest versa sobre mudanças forçadas. Seu enredo é amparado por um fato histórico (privatização de terras comunitárias), num contexto de relação entre donos de latifúndios e pequenos produtores ou simples camponeses que, até hoje, vemos existir na maior parte dos países. A relação dos indivíduos com a terra, de maneira prática ou mesmo espiritual, também se insere no filme, e toda a base cultural é igualmente posta na mira dessa mudança repentina, a começar pela adequação secular de Mestre Kent, deixando suas vestes (do tipo túnica) para adotar a camisa e a calça com babados, como mandava a ordem masculina. Os cânticos, as danças, as máscaras, os saberes e a forma de viver e conviver dos camponeses perdem significado com a chegada do primo empreendedor, o proclamado “herdeiro legítimo” daquelas terras. A colheita, aqui, transforma-se na despedida de uma Era e início de uma nova fase que nunca mais seria barrada. Um cenário que recebe nomes diferentes, justificativas diferentes, mas, a rigor, é dominado pelo mesmo grupo social… em detrimento do mesmo grupo social de sempre.     

Harvest (Reino Unido, Alemanha, Grécia, França, EUA, 2024)
Direção: Athina Rachel Tsangari
Roteiro: Joslyn Barnes, Athina Rachel Tsangari
Elenco: Frank Dillane, Harry Melling, Caleb Landry Jones, Arinzé Kene, Rosy McEwen, Mitchell Robertson, Grace Jabbari, Thalissa Teixeira, Gordon Brown, Stephen McMillan, Neil Leiper, Emma Hindle, Noor Dillan-Night, Gary Maitland, Antonia Quirke
Duração: 131 min.

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