Harley Quinn já começou a primeira temporada chutando violentamente a porta das convenções e levando a protagonista, com um trabalho de voz incrível de Kaley Cuoco, à sua emancipação na versão animada, ao lado de seu esquisito grupo de super-vilões composto pela sempre séria e compenetrada Hera Venenosa (Lake Bell), o metido-a-ator Cara de Barro (Alan Tudyk), o fofo, mas voraz Tubarão Rei (Ron Funches), o louco desvairado e misógino Doutor Psycho (Tony Hale) e, finalmente, o idoso semi-ciborgue e cadeirante Sy Borgman (Jason Alexander), além do nem sempre presente, mas sempre hilário quando presente Frank, A Planta (J. B. Smoove), uma cópia do ser alienígena de A Pequena Loja dos Horrores. Mas, a grande verdade, é que faltava alguma coisa. A série parecia ainda presa à convenções e incômoda em seu espaço, apesar da evidente qualidade. Faltava o caos.
E é o caos que serve de infraestrutura (ou de falta de infraestrutura, talvez melhor dizendo…) para a segunda temporada, ajudando-a a alcançar de fato seu potencial. Afinal, no lugar de resolver como em um passe de mágica a destruição total de Gotham City que Quinn causou para eliminar o Coringa (também Tudyk), o segundo ano da série constrói tudo em cima disso, já de cara fazendo com que o Presidente dos EUA declare que a cidade não mais é parte do país, tornando-a, basicamente, Terra de Ninguém, o que é código para que os vilões mais importantes passem a disputar território. Não só isso, como também não há mais super-heróis. O Batman sumiu nos escombros da velha Gotham e o restante da Liga da Justiça está vivendo um conto-de-fadas lá no livro da Rainha das Fábulas como mostrado na temporada anterior. Em outras palavras, não há nada para atrapalhar o caos total.
E Harley Quinn é como um pinto no lixo nesse cenário de fim de mundo ao primeiro tentar, seguindo a interpretação dela do conselho de Hera, fazer uma espécie de “revolução de capangas” para desestabilizar os grandes vilões da cidade, o que os leva a congelá-la e a expô-la como um troféu no Iceberg Lounge do Pinguim. Quando ela é finalmente resgatada por seus colegas na pior operação de resgate do mundo, Quinn é pura vingança e parte então para eliminar seu inimigos – que formaram a Liga da Injustiça – um-a-um. A bagunça é tão formidável que chega ao ponto de ela efetivamente executar o Pinguim (Wayne Knight), transformar o Charada (Jim Rash) em um hamster na rodinha que, hilariamente, na medida em que fica mais forte, fica mais burro, achar a cura para Nora (Rachel Dratch), a esposa do Senhor Frio (Alfred Molina), exigindo, porém que o marido apaixonado tenha que se sacrificar e assim por diante. Até mesmo um trato com Darkseid (Michael Ironside perfeito emprestando sua voz ao super-vilão) a moça faz, trazendo uma horda de parademônios para Gotham…
Mesmo quando o lado tradicionalmente heroico é abordado, o que temos é o depressivo Jim Gordon (Christopher Meloni de novo arrasando em seu trabalho de voz) lidando com o Duas-Caras como forma de redenção, mas que é, mais do que isso, uma história de origem para a Batgirl (Briana Cuoco). Ah, claro, temos um episódio inteiro dedicado ao Batman, não tenham dúvida, mas ele é ouro puro em seu sarcasmo e desancamento daqueles machos frágeis que se sentem ofendidos com o destaque dado a Harley Quinn: Bruce Wayne (Diedrich Bader) se recupera, claro, tenta voltar ao “trabalho” com uma super-armadura na maneira típica do Batman preparado para tudo, e, quando tudo parece começar a dar certo, acaba dando terrivelmente errado, com a animação literalmente atualizando a definição do famoso arco do Homem-Morcego quebrado por Bane (James Adomian, outro que faz uma voz excelente). E tudo em um episódio que é enquadrado por dois nerds assistindo a um episódio de Harley Quinn que manda todo o recado que a produção deveria mesmo mandar e da maneira mais didática (e hilária) possível para ninguém ficar com dúvidas…
Obviamente que o pano de fundo da temporada toda é a história de amor entre Harley e Hera. Tudo é feito a seu tempo, sem correrias, com Hera mantida firme em seu relacionamento com o sempre sincero e simpático Homem-Pipa (Matt Oberg) e grande parte dos episódios serem dedicados a coisas prosaicas como os preparativos para o casamento e festas de solteiro, o que permite a existência de um episódio em que, de um lado, as mulheres (adoro que uma das convidadas para a festa é uma personagem aleatória do passado de Hera que nunca havia sido vista antes) vão para a Ilha Paraíso que, agora, é um resort controlado por Éris (Jameela Jamil) e prestes a ser vendido para Lex Luthor (Giancarlo Esposito), com direito a “avião comercial invisível” (e aves que não o enxergam…) e muita esbórnia e, de outro, os homens vão pescar em um barco, com o Tubarão Rei sendo achado por um dos emissários de seu pai que lhe faz um musical à la A Pequena Sereia (só que escatológico) que é de passar mal de rir.
Os únicos problemas da temporada ficam por conta da sub-trama do “renascimento” do Coringa que, é bem verdade, inverte os papéis completamente e subverte expectativas ao transformá-lo em um “pai suburbano”, já que tudo demora muito e consome uma minutagem desnecessária, especialmente quando a temporada está para acabar. Além disso, o retorno efetivo dos super-heróis, que é consequência direta da história do Coringa me pareceu um artifício cansado, que, talvez, pudesse ter sido adiado por mais algum tempo ou ser abordado de maneira menos apressada, como se fosse uma nota de rodapé (se era para ser uma, então que fosse de verdade, e não algo que ganha costuras na história principal).
A segunda temporada de Harley Quinn termina de escancarar as portas da primeira, levando a parede e as fundações junto. Fica difícil imaginar como a equipe criativa conseguirá ir além, em termos de maluquices, do que foi mostrado aqui, sem começar a repetir situações ou a tirar o foco da protagonista. Mas, considerando o salto de qualidade do primeiro para o segundo ano, tudo é perfeitamente possível nesse mundo louco comandado por uma arlequina emancipada.
Harley Quinn – 2ª Temporada (EUA, 03 de abril a 26 de junho de 2020)
Desenvolvimento: Justin Halpern, Patrick Schumacker, Dean Lorey
Direção: Vinton Heuck, Colin Heck, Brandon McKinney, Juan Meza-Leon, Tom Derosier, Christina Sotta
Roteiro: Adam Stein, Sabreena Jalees, Sarah Peters, Tom Hyndman, Sarah Nevada Smith, Jamiesen Borak
Elenco: Kaley Cuoco, Lake Bell, Tony Hale, Ron Funches, Jason Alexander, Matt Oberg, Alan Tudyk, J. B. Smoove, Christopher Meloni, James Adomian, Diedrich Bader, Briana Cuoco, Andy Daly, Rachel Dratch, Giancarlo Esposito, James Wolk, Tom Hollander, Michael Ironside, Wayne Knight, Sanaa Lathan, Vanessa Marshall, Joey Day
Alfred Molina, Jim Rash, Jessica Walter, J. B. Smoove, Jameela Jamil
Duração: 286 min. (13 episódios)