“Até que a morte nos separe.”
Contém spoilers.
Enquanto o Coringa tem como sua grande premissa, enquanto personagem, o enlouquecimento do homem perante o caos da sociedade, e o Batman, por sua vez, caminha por um campo parecido, do homem que se aventura pela noite como um morcego não em vista de algum princípio heroico, mas por conta do seu passado traumático, cada vez mais a narrativa clássica por trás da Arlequina se concretiza. Como o longa-metragem, que em meses estreará, anuncia no seu próprio nome, a super-vilã conecta-se com o conceito de emancipação do seu parceiro maquiavélico. No caso, se ultrapassa a primeira parte da construção identitária da mulher, acerca de quando ela era uma das muitas pessoas deturpadas mentalmente pelo tal do Palhaço Príncipe do Crime. Esse aspecto do cânone, por sinal, bem pouco mudou desde a apresentação da Dra. Harleen Quinzel, na animação icônica dos anos 90: uma psiquiatra do Asilo Arkham que, em contato com o Coringa, termina se transformando, encorpando a loucura que molda o arqui-inimigo do Homem-Morcego quem ele é. Mas quem a Arlequina é? A segunda etapa para a vilã, por isso, é conseguir a independência do psicopata que a mantém em um relacionamento tóxico. Logo, essa sua série não escapa muito da concepção moderna da Arlequina, seguindo uma maré que, de qualquer modo, instiga bastante no que tange ao desenvolvimento da personagem e também à discussão de temas relacionados a ela.
Para chegar à emancipação esperada, a protagonista, interpretada por Kaley Cuoco, terá o apoio da Hera Venenosa (Lake Bell), sua grande amiga que, nesse piloto, elabora planos para conseguir convencer a Arlequina de que o Coringa (Alan Tudyk) não a ama. Nisso, a animação segue uma estrutura concisa, que não se preocupa em estabelecer grandes premissas para a temporada além da mais importante e central: a caminhada da personagem por conta própria. No que diz respeito ao engrandecimento da Arlequina como uma pessoa poderosa por si só, também vale ser notado o bom uso da Hera Venenosa nessa re-caracterização da psiquiatra. O seu passado é relembrado rapidamente, mas serve como ponte para Arlequina ser exemplificada como inteligente, o que é um contraste enorme em relação a uma pessoa submissa. O pequeno momento dela conversando com o seu eu do passado, a psiquiatra do Asilo Arkham, é preciso nesse sentido. No caso, o que o episódio propõe é que a tragédia do relacionamento abusivo vá além de uma mera desqualificação do alguém abusado. Pelo contrário, a real culpa é do abusador, personificado aqui num Coringa completamente detestável e manipulador, que se vende como o antagonista-mor de Harleen, antes sua parceira. Mesmo sendo bastante simples e direta nos seus propósitos, a animação os sustenta num contraste entre a sua perspectiva subjacente – pensar sexismo – e a sua estrutura caricatural.
Embora os temas que começam a ser explorados nesse piloto indiquem uma complexidade, e a violência seja uma constante a essa série que se vende como madura, o caráter cartunesco dos traços, com as cores bem vivas, movimenta uma noção particular para a animação. Enquanto os dramas da personagem também poderiam ser usados como plataforma para uma obra mais sombria, o caso é o oposto. Os três homens que comandam a animação – Dean Lorey, Justin Halpern e Patrick Schumacker – a sustentam por uma base cômica curiosa, até mesmo no que se refere ao roteiro. O Comissário Gordon (Chris Meloni), por exemplo, assim como o próprio Batman (Diedrich Bader), são encarados como piadas, assim como a narrativa da obra, recheada de momentos mais simples no que tange à resolução de problemas. Fora eles, Hera conta com um coadjuvante em sua casa também voltado a piadas, Frank (J.B. Smoove), a Planta. O bom humor, às vezes até imaturo, contrasta com a maturidade temática. Apesar disso, essa simplicidade não diminui o competente arco construído, mesmo que objetivo, para a personagem, que inicia o episódio usando o clássico traje arlequinesco e o encerra com as roupas típicas de sua contraparte contemporânea. No mais, é extraordinário como uma série animada consegue ser graficamente mais caprichada que a maior parte dos longas animados que a DC, nos últimos cinco anos, lançou.
Mesmo assim, será que a trama da protagonista terminará minimizada perante a ingenuidade que o tom da série subtende? E os temas que ela retrata manterão uma continuidade no decorrer dos episódios? Ou o trio de criadores da animação não conseguirão ir além de uma série que, portanto, trairia, pela maneira como seria executada, a sua própria premissa – no caso, a emancipação fantabulosa de uma Arlequina. Há um ponto que transparece de maneira gritante nesse piloto, porém, que merece ser notado. Pelo modo com o roteiro constrói a narrativa, a violência da série e seu linguajar desbocado soam gratuitos. Enquanto outras séries usariam esses elementos como parte de um propósito irônico, dramático ou até tonal, a animação parece se render a um mero conceito estético vazio. O gore chama a atenção dos adultos, mas para uma série que, no fim das contas, não tem nada muito adulto a mostrar no que tange a isso, pelo menos no primeiro episódio. Sem o sangue e os palavrões, ele poderia ter sido tranquilamente direcionado para menores de idade, tratando de modo espirituoso assuntos importantes. Por outro lado, contudo, não seria justo julgar isso tudo apenas por uma primeira impressão, que, pelo bem ou pelo mal, apresenta uma obra com personalidade, mesmo que tão esquizofrênica quanto seus personagens. Os próximos meses renderão um espaço para a Arlequina mostrar ao que veio, seja no cinema ou no streaming.
Harley Quinn – 01X01: Til Death Do Us Part – EUA, 29 de novembro de 2019
Criação: Dean Lorey, Justin Halpern, Patrick Schumacker
Direção: Juan Meza-Leon
Roteiro: Dean Lorey, Justin Halpern, Patrick Schumacker
Elenco: Kaley Cuoco, Lake Bell, Alan Tudyk, Diedrich Bader, Jim Rash, Chris Meloni, J. B. Smoove
Duração: 23 min.