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Crítica | Harlem: 1ª Temporada

Compartilhamento de experiências pessoais e profissionais como tema central da jornada de quatro protagonistas interseccionais.

por Leonardo Campos
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Ao longo da caminhada investigativa sobre séries que refletem o legado e o impacto cultural de Sex and The City, um punhado de produções interessantes foi encontrado, algumas pueris, outras mais firmes, a maioria com uma abordagem semelhante ao fenômeno da HBO do final dos anos 1990, recentemente repaginada em And Just Like That. Criada por Tracy Oliver, Harlem é uma dessas produções, uma narrativa seriada que encapsula alguns elementos desse mencionado ponto de partida, mas que trilha o seu próprio caminho. E, diferente de Run The World, equilibra melhor o humor e os debates que propõe, com a pavimentação de um caminho ficcional sem pesar na caricatura. Comparo por aqui as duas séries porque ambas partem da perspectiva feminina interseccional, isto é, são mulheres nova-iorquinas negras, todas em busca de um lugar confortável numa sociedade com sérios problemas, tais como o racismo estrutural, a misoginia nos ambientes de trabalho, o preconceito com idade e gênero, dentre tantas outras celeumas que são alvos de batalhas intensas das mulheres há eras. Aqui, o protagonismo gira em torno de Camille Parks (Meagan Good), Tye Reynolds (Jerrie Johnson), Quinn Joseph (Grace Byers) e Angie Wilson (Shoniqua Shandai), cada um com seu perfil ficcional diferente, mas todas complementares na representação coletiva do feminino negro interseccional contemporâneo.

Logo em sua primeira temporada, Harlem apresenta a cidade de Nova Iorque como um microcosmo das batalhas, das aspirações e dos triunfos de um grupo de mulheres negras que navegam por suas demandas pessoais e profissionais em um ambiente muitas vezes hostil. E, embora as protagonistas enfrentem desafios individuais, a amizade é a força motriz que as une. Juntas, as quatro representam a diversidade de experiências e perspectivas que coexistem na vida urbana. No âmago de suas interações está um afeto genuíno que se traduz em suporte mútuo, ajuda em momentos de crise e celebração das conquistas. É a sororidade, palavra-chave dos relacionamentos que, tal como a empatia, se tornaram as âncoras para as perspectivas interpessoais no contemporâneo. Ao longo dos episódios, a amizade é retratada não apenas como um refúgio, mas também como um agente de mudança, pois ao passo que as personagens se apoiam, elas se tornam mais resilientes, servindo como apoio mesmo quando uma delas, como qualquer ser humano, comete algum equívoco.

Para além dos momentos cômicos e dramáticos que nos permitem identificação, independentemente do lugar de fala em que nos posicionamos, as relações das protagonistas destacam a importância das comunidades femininas na construção da identidade e na luta contra as adversidades sociais. É uma rede de suporte emocional crucial em um mundo que tende a marginalizar as vozes femininas, especialmente aquelas de mulheres negras, trazendo à tona a ideia de que a sororidade é vital para o crescimento pessoal e coletivo. Isso foi contemplado ao longo das seis temporadas do primeiro bloco de Sex and The City, mas numa perspectiva anos 1990, um período que ainda havia de enfrentar muitas mudanças, em especial, na representatividade. Mas, é inegável como Harlem bebe na fonte dramática do programa criado por Darren Star em 1998, não apenas pela questão das amizades, mas na exploração da sexualidade e da autodescoberta. Em seus episódios curtos e dinâmicos, a produção apresenta personagens que questionam e redefinem suas experiências sexuais, desafiando as normas tradicionais associadas à sexualidade feminina.

As protagonistas em Harlem possuem vozes e desejos próprios, sendo a sexualidade abordada como uma extensão de suas respectivas identidades. Divertida, reflexiva e coesa em seus roteiros, a série promove discussões abertas sobre sexo e relacionamentos, abordando dilemas como compromisso, atração e as complexidades do amor contemporâneo, em especial, numa era de aplicativos e demais facilitações que, na realidade, se tornaram uma maldição e tornaram ainda mais complexa a dinâmica dos relacionamentos. São linhas de diálogos que não são desprovidas de humor, mas também revelam vulnerabilidades e inseguranças. E, por meio das experiências sexuais de suas protagonistas, Harlem encoraja uma visão mais saudável e positiva da sexualidade, desmistificando tabus e propondo uma reflexão sobre a liberdade sexual e as suas implicações, além de versar sobre as aspirações profissionais de suas protagonistas.

Ao também estabelecer esse espaço para a circulação de suas personagens, explorando como a ambição feminina é frequentemente confrontada por barreiras sociais e culturais, a narrativa seriada expõem o ambiente competitivo da indústria da moda, da música e do entretenimento, além de outros setores, todos como pano de fundo para a luta de cada figura ficcional por reconhecimento e sucesso. Ao longo dos acontecimentos em cascata no interior dos episódios, a produção levanta questões sobre a discriminação, as desigualdades de gênero e raça, bem como as pressões que as mulheres enfrentam em um mundo corporativo ainda predominantemente masculino. Interessante que durante os desafios enfrentados pelas protagonistas, podemos observar que o sucesso não é apenas um objetivo, mas também um reflexo das lutas e sacrifícios que cada uma enfrenta. As vitórias são conquistadas a custo de enfrentamentos pessoais e conflitos internos, retratando a ideia de que a ambição pode ser tanto uma força transformadora quanto uma carga pesada. É uma série sobre o enfrentamento de sacrifícios, mas também do cansaço da esfera feminina diante da batalha por tópicos que não deveriam, mas ainda se perpetuam cotidianamente, algo que traz um tom de “universalidade” ao programa.

Por meio da reflexão sobre a interseccionalidade, onde raça, classe e gênero se entrelaçam para moldar a identidade, Harlem expõe como as mulheres negras enfrentam desafios únicos que exigem uma compreensão mais profunda de suas dinâmicas sociais, destacando a importância da autenticidade e do empoderamento na construção da identidade. As cenas que mostram a autoafirmação e a luta contra a opressão são particularmente impactantes e refletem um desejo crescente de liberdade e aceitação, sem deixar de mixar, com equilíbrio, humor e drama. Nós, enquanto espectadores, contemplamos toda essa vibração positiva de empoderamento por meio da eficiente direção de fotografia, assinada por Matt Edwards, setor que permite uma exposição visual intensa das cores e dos demais componentes do design de produção, também assertivo, assinado por Kara Zeigon. No âmbito da musicalidade, a série é acompanhada pelas composições de Renald Francouer, igualmente competente na construção da estética do programa. Os figurinos também são devidamente escolhidos por aqui, trajando adequadamente as protagonistas diante do perfil físico, social e psicológico de cada uma delas.

Ademais, a série vai além das vidas de suas protagonistas, explorando também a história e a cultura do Harlem, um bairro que simboliza a resistência e a resiliência da comunidade negra ao longo de tantas décadas e movimentos culturais. Por meio de referências à música, arte, moda e culinária, a série captura a essência vibrante da cultura afro-americana, com menções visuais e textuais que oferecem uma dimensão mais profunda ao enredo, mostrando como a identidade cultural e a experiência coletiva influenciam as vidas dos personagens. Nesse processo, Harlem torna evidente que as lutas individuais não ocorrem no vácuo, mas são profundamente conectadas a uma herança cultural rica e complexa. É uma interconexão que realça a ideia de que a identidade é moldada não apenas por experiências pessoais, mas também por um legado cultural que continua a impactar a vida das gerações atuais. Diante do exposto, caro leitor, a primeira temporada de Harlem nos apresenta um programa com habilidade em equilibrar temas sérios com humor e leveza. A série consegue abordar questões complexas de forma acessível e envolvente, usando o humor como uma ferramenta poderosa para suavizar tensões e ampliar o impacto emocional das narrativas. É uma abordagem que permite ao público, se identificar com os personagens, estabelecendo uma conexão mais profunda com suas lutas e triunfos.

Assista e confira você mesmo essa jornada de empoderamento.

Harlem – 1ª Temporada (Idem/EUA, 2021)
Criação: Tracy Oliver
Direção: Linda Mendoza, Stacey Muhammad, Shea William Vanderpoort
Roteiro: Tracy Oliver, Jessica Watson, Aeryn Michelle Williams, Alisha Cowan
Elenco: Meagan Good, Jerrie Johnson, Grace Byers, Shoniqua Shandai, Tyler Lepley, Whoopi Goldberg, Sullivan Jones, Juani Feliz, Jonathan Burke, Kate Rockwell, Christine Jones
Duração: 300 min. (10 episódios)

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