Arlequina é uma personagem da DC Comics que me divide bastante. Por um lado, gosto da linha de “atrevimento insano”, cômico e muitas vezes simbólico que alguns roteiros dão a ela. Por outro, não consigo deixar de me irritar imensamente com a DC empurrando a personagem para tudo quanto é história, especialmente após a abordagem de anti-heroína da Palhaça (solo ou junto ao Esquadrão Suicida e Aves de Rapina), tornar-se popular. É óbvio que empurrar personagens após uma considerável popularidade em mídias audiovisuais não é nenhuma novidade para qualquer um que observa ou estuda o comportamento mercadológico de qualquer editora de quadrinhos ou livros (é bom deixar isso claro antes que um incel fedido comece a bostejar sobre feminismo nos comentários), e a Arlequina não será a primeira e nem a última parte desse tipo de comportamento. Ocorre que nem sempre isso funciona, daí a minha citada irritação. Em Harleen, no entanto, estamos em outra seara.
Minissérie em três volumes lançada pelo selo Black Label, Harleen é produto da pena e do lápis de Stjepan Šejić, artista croata que entrega aqui um verdadeiro presente psiquiátrico para o leitor, dando a sua própria visão da origem da Arlequina, passando aqui e ali por homenagens e piscadelas à famosa Amor Louco, de Bruce Timm e Paul Dini. Desta vez, porém, a toada adulta que marca o selo Black Label permite não só uma caminhada mais adulta em torno da violência, indicações sexuais e palavrões, mas também em torno da construção da personagem em sua área de atuação, o verdadeiro foco da minissérie, desenvolvido à medida que as coisas se tornarem cada vez mais sombrias e sem volta para a Doutora Harleen Quinzel.
Com isso em mente, o leitor não deve esperar uma saga que traga a divisão-base das histórias de origem em arcos ou minisséries comuns: metade dedicada à ascensão do personagem ao status que o conhecemos e outra metade aos primeiros momentos de sua atuação. A proposta de Harleen é, acima de tudo, mostrar como uma mulher com esse nível de inteligência, com um projeto teórico revolucionário dentro da psicologia, pode cair nas garras do Coringa, pra começo de conversa. Pois bem, é em torno desse papo, ou seja, da personalidade, ações, sentimentos e comportamentos da futura vilã que o roteiro se debruça, indo do medo ao pavor de uma profissional isolada desde a faculdade, por ter dormido com um professor, e que passou a vida adulta mascarando a solidão com o trabalho. A complexidade dela se mistura com sua função e é testada durante as entrevistas de alguns internos do Asilo Arkham, local onde veremos a intensificação do medo, dos pesadelos e dos sentimentos da Doutora após um breve e traumático encontro com o Palhaço do Crime em uma determinada noite, nas ruas de Gotham.
A arte de Šejić é perfeita para este tipo de projeto. Como estamos falando de distúrbios emocionais ou mentais, o olhar desses personagens para o mundo ganha uma característica particular. O deslocamento do cenário, com o primeiro plano (ou aquilo que interessa) em pleno foco e o fundo sempre mais difuso, realça uma introspecção cada vez mais neurótica. O Universo do autor é frio (nada novo para Gotham, mas a finalização e a aplicação de cores torna os desenhos ainda mais amedrontadores e com um notável tom de realismo) e sua interação com a violência é de uma elegância perturbadora, da mesma forma que aparência bonita do Coringa na vida real versus a sua monstruosa figura nos sonhos da Doutora. Através da arte, Šejić cria no leitor o princípio do desconforto com personagens e cenários, e através do texto, preenche esse incômodo de significados, tornando tudo mais assustador por trazer discussões atuais, com destaque para a linha de pensamento sobre a recuperação e reinserção de criminosos na sociedade, após o cumprimento de suas penas e confirmação psicológica para tanto.
Assim, faz todo o sentido que Harvey Dent cumpra um papel de grande importância nessa trama, sendo quase uma mística figura catalisadora dos males em torno da protagonista, o que em nenhum momento ganha ares de circunstância atenuante para os erros dela. Aliás, toda a jornada de Harleen é pautada pelo medo, pela constante tentativa de recomeçar a vida depois de um forte abalo emocional, e pela autocrítica. Mas como qualquer indivíduo, a Doutora também é produto de seu meio, e circunstâncias muito peculiares em torno dela parecem empurrá-la cada vez mais para o abismo, inclusive em ações por acidente, por impulso ou por simples paixão cega, seja em relação à sua área ou a sentimentos que ela não tinha mais forças para segurar ou negar.
O autor joga com a nossa capacidade de rejeição à manipulativa, tóxica e infame relação que Harleen estabelece com o Coringa. No final, há um caminho didático meio destoante da minissérie que reafirma o que já sabíamos: o tal sentimento de aproximação entre os dois era mais uma parte do jogo do Palhaço para sair do Arkham, no entanto, o beijo da loucura, no final, não deixa de ser muito bem observado por Alfred como algo possivelmente genuíno. Há coisas que só através do distúrbio é possível explicar. Essa relação ganha pontuais momentos de erupção na história, terminando com um doente e angustiante delírio da personagem, mergulhada na versão dela mesma que só estava esperando um potente momento para irromper. Até que aconteceu. A tal ideia do “dia ruim” que conhecemos em A Piada Mortal.
O desfecho marcante traz a bofetada final de repreensão para todos os muito inocentes ou insanos que acham bonitinho romantizar o “tough love” entre Arlequina e Coringa. Uma história que retrata relações e comportamentos de descida de muitos indivíduos ao seu próprio inferno psicológico… para de lá, infelizmente, nunca mais sair.
Harleen (EUA, novembro de 2019 – fevereiro de 2020)
Publicação original: DC Comics – Black Label
No Brasil: Panini, 2020
Roteiro: Stjepan Šejić
Arte: Stjepan Šejić
Arte-final: Stjepan Šejić
Cores: Stjepan Šejić
Letras: Gabriela Downie
Capas: Stjepan Šejić
Editoria: Andy Khouri, Maggie Howell
180 páginas (3 livros de 60 páginas)