Madame Butterfly nunca foi uma obra próxima de retratar a cultura japonesa com algum grau de acurácia. E nem poderia ser, pois o conto foi escrito pelo americano John Luther Long com base nas lembranças de sua irmã quando viajou com seu marido missionário metodista para o Japão e estruturalmente inspirado pela obra Madame Chrystanthéme, do francês Pierre Loti, tornando-se célebre como uma ópera composta pelo italiano Giacomo Puccini. Em outras palavras, de nipônico mesmo só há a impressão ocidental sobre o então extremamente exótico e isolado país-ilha. Portanto, mesmo com muita boa vontade, qualquer adaptação da referida obra não carregará com ela qualquer grau de verossimilhança que se exige especialmente hoje em dia em termos de cuidado étnico, cultural e histórico
Faço questão de trazer esse contexto, pois já reparei que Harakiri, quarto filme do primeiro ano do alemão Fritz Lang na cadeira de diretor cinematográfico e apenas um dos dois sobreviventes (e outro é Aranhas – Parte 1: O Lado Dourado) é rechaçado como sendo racista, culturalmente incorreto e tudo o mais que tem se tornado comum dizer de qualquer longa que não siga regras não escritas de como olhar para culturas que não seja a do próprio cineasta, como se artistas tivessem que ficar circunscritos a basicamente contar histórias sobre o bairro onde cresceram (a maior prova da bobagem que é isso é Cartas de Iwo Jima, de ninguém menos do que o inegavelmente conservador Clint Eastwood, só para trazer um exemplo bem próximo). E, é claro, há que se levar em conta que estamos falando de um longa da aurora do Cinema, em que atores etnicamente corretos em produções que não fossem dos respectivos países retratados era algo tão inimaginável quanto gente que não leva obviedades como essa em consideração.
Afastados os preconceitos inerentes, Harakiri é surpreendente. Sim, a protagonista japonesa é vivida por Lil Dagover, uma das mais famosas atrizes alemãs da época e o roteiro, não oficialmente baseado na obra de Long, possivelmente por questões autorais da mesma natureza de Nosferatu, de F.W. Murnau, coloca o marinheiro dinamarquês Olaf J. Anderson (Niels Prien) em tese como salvador da pátria (ainda que ele esteja longe de ser exatamente isso), mas é impossível não ficar admirado pelo cuidado da produção em retratar pelo menos com forte verossimilhança a cultura japonesa sob os olhos Ocidentais da época. Basta reparar nos figurinos, maquiagem e cabelo cuidadosamente ornados e montados (concordo que Dagover parece tudo, menos japonesa, uma escolha claramente deliberada para deixá-la reconhecível ao público, considerando que os atores masculinos têm melhor sorte nesse quesito), assim como os cenários internos ricos em detalhes e as sequências em espaço aberto, como na procissão de barcos durante a festa outonal que marca o primeiro terço da narrativa, são luxuosas e imersivas.
A história acompanha a jovem O-Take-San (Dagover), filha do Daimyō Tokujawa (Paul Biensfeldt), que é cobiçada pelo monge budista local (Georg John) que ostensivamente a quer como sacerdotisa, mas que claramente tem outras intenções. Depois que uma traição do monge leva ao suicídio de seu pai por ordem do Imperador, ela não tem escolha a não ser curvar-se ao monge, mas o destino a leva a tornar-se uma geisha que acaba casando por 999 dias, conforme o costume, com o dinamarquês. Lang segue rigorosamente a estrutura de três atos, com o primeiro correndo muito bem, mas o segundo alongando-se talvez demais, sem conseguir sucesso no estabelecimento convincente da relação entre os dois amantes.
Finalmente, no terceiro ato, o roteiro introduz um novo personagem, o Príncipe Matahari (Meinhart Maur), como pretendente à mão de O-Take-San. O problema, a essa altura, é a forma como ele é apresentado e como ele chega à moça, agora já com um filho de quatro anos de Anderson. Tudo acontece sem construção ou qualquer tentativa de desenvolvimento ou de contextualização da presença do príncipe ali que não seja cumprir sua função que é claramente a de mostrar o quão decidida é a protagonista em manter-se “casada” com Anderson, mesmo com ele longe dali. Matahari é tão unidimensional e sua chegada é tão de paraquedista, que não sei se é possível classificar o personagem como um efetivo personagem. Ele é mais uma mera peça sendo levada à casa correta sempre que necessário.
Mesmo com seus problemas, Harakiri mantem-se íntegro em seu propósito, criando uma personagem forte e trágica que revela a qualidade da atuação de Dagover e a clara percepção de Lang sobre sua atriz. Além disso, o suntuoso design de produção é sem dúvida um destaque, além da cuidadosa e quase kubrickiana distribuição cenográfica que o cineasta faz a cada nova sequência. Esse talvez seja um dos poucos casos em que uma duração um pouco maior tivesse curado as falhas mais óbvias em termos de desenvolvimento de personagens, elevando a obra a algo mais do que um dos “filmes-teste” do começo de carreira de Fritz Lang.
Harakiri (Idem – Alemanha [República de Weimar], 1919)
Direção: Fritz Lang
Roteiro: Max Jungk (baseado na peça de David Belasco e John Luther Long, por sua vez baseada no conto de John Luther Long)
Elenco: Lil Dagover, Paul Biensfeldt, Niels Prien, Georg John, Meinhart Maur, Rudolf Lettinger, Erner Huebsch, Niels Prien, Käte Küster, Herta Heden, Loni Nest
Duração: 86 min.