Se em O Homem Que Sabia Javanês Lima Barreto soltou o verbo em torno da hipocrisia dos laureados e louvados sem merecimento, aqui em Harakashy e as Escolas de Java, escrito 9 anos depois, ele volta ao tema ainda com mais força, genialidade e veneno. Harakashy, amigo do narrador, só aparece mesmo no final. A obra, pois, consiste em um relato que atravessa diversos estágios emocionais e aborda o peculiar método educacional de Java, que bem pode ser qualquer lugar do mundo onde um diploma, mesmo para aqueles que se formam sem saber nada, vale muito mais do que qualquer conhecimento de fato.
A semelhança com o caso de Castelo, no conto de 1911, está nessa relação entre “parecer ser, sem ser“; mas aqui o autor brinca com isso de diversas formas. Primeiro, ele expõe o estranho condicionamento que as Escolas (Universidades ou “Academia de Letras”) impõem à literatura nacional, o que certamente é a denúncia do autor para o tipo de crítica que ele próprio recebia dos pares, por não ter um vocabulário “típico de grande escritor ” ou carregar uma determinada identidade em seus escritos. É importante lembrar que a esta altura, Lima Barreto já havia escrito suas três principais obras, Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), de modo que a amargura não é apenas crítica para uma conhecida realidade de coleguismo literário e estéril; para contatos bem vestidos, disputa de indumentárias e exibição para os bacanas da “cena das letras”, mas a exposição de um tipo de vício acadêmico e social que, no fim das contas, ignora bons produtos em detrimento de mediocridades ou nulidades vendidas com português caprichado.
O curioso é que além de expor uma base educacional que consiste em padronizar o pensamento dos estudantes em escolas fechadas, o autor explora o quanto a sociedade dá suporte a esse tipo de coisa, exaltando o academismo que acaba sendo a maior peneira na hora de se conseguir um lugar no mercado de trabalho (o que é bizarro, porque estamos falando de um academismo burro). Ainda hoje há elementos de nossa educação que se assemelham àquilo que o autor critica aqui: o fato de muitos se formarem sem nada saber / o fato de a maioria empregar meios ilícitos para conseguir aprovação nos testes / o fato de os ricos conseguirem burlar tranquilamente as regras enquanto os pobres precisam trabalhar duas vezes mais para mostrar aos javaneses o “rigor da Universidade” / e o fato de que a reprovação é uma vergonha ainda maior para o indivíduo, algo que o marca socialmente pela vida inteira.
O autor, contudo, não sai condenando sem critério ou adicionando todas as peças da máquina num mesmo saco. Ele deixa claro que nem todos os professores são culpados e que as próprias Escolas, a “Academia de Letras” e as ocupações em Java possuem o seu valor e são necessárias. O problema é que a burocracia, os floreios absurdos e o não-reconhecimento da real inteligência e excelência nas letras (foco central do conto) acaba abrindo as portas para toda a sorte de corrupção do ofício, tornando-o importante pelos motivos errados. E sabem o que é mais triste quando lemos um conto desses? É que as mazelas que ele satiriza permanecem no seio do processo educacional brasileiro, do Ensino Fundamental ao Ensino Superior e se alastra para as Organizações que reúnem os formados notáveis, até chegar à nossa Academia de Letras — que num exemplo de pouco menos de dois anos antes da escrita dessa crítica, preteriu a cadeira que deveria ser de Conceição Evaristo, para dá-la a Cacá Diegues. Coisas assim na ABL ocorrem desde os seus primeiros anos. Lima Barreto sentiu isso na pele. “As Escolas de Java”, para a nossa infelicidade, estão na verdade em solo brasileiro.
Harakashy e as Escolas de Java (Brasil, 1920)
Autor: Lima Barreto
Publicação original: Histórias e Sonhos
Edição lida para esta crítica: Lima Barreto – Obra Reunida
Editora: Nova Fronteira, 2018
11 páginas