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Crítica | Handia

por Marcelo Sobrinho
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Os cineastas bascos Jon Garaño e Aitor Arregi sempre foram fascinados pela figura mítica do “Gigante de Alzo”. Muito conhecida na Espanha, a história de Joaquín Eleizegui é um dos primeiros casos relatados na Europa de uma doença um tanto peculiar – o gigantismo. Em meados do século XIX, em meio ao espocar da Primeira Guerra Carlista, conflito em que se enfrentaram os monarquistas e os liberais espanhóis, surgiu o estranho caso clínico que se tornaria uma lenda no País Basco. O gigantismo e a acromegalia só receberiam sua primeira descrição médica razoável no ano de 1886, quando o neurologista francês Pierre Marie relatou o caso de uma mulher de 24 anos que deixara de menstruar e cujas extremidades começaram a crescer. Se hoje o conhecimento médico torna as duas condições bastante conhecidas e tratáveis, certamente o caso de Eleizegui despertara bastante curiosidade e estranheza nos idos de 1840. Mas mais do que uma mera reconstituição historiográfica, Handia (que significa “gigante” em basco) transforma o lendário caso em bela e sensível experiência artística.

O filme de Garaño e Arregi tornou-se, em fevereiro de 2018, o terceiro maior vencedor da história do Goya – o equivalente espanhol do Oscar – ao levar para casa 10 estatuetas. E, de fato, há motivos para isso. O filme basco narra a história dos irmãos Joaquín (Enerko Sagardoy) e Martín (Joseba Usabiaga) e seu pai Antonio (Ramon Agirre) com uma delicadeza que impressiona. As interpretações dos dois atores que dão vida aos irmãos Eleizegui mantêm o alto nível do filme e constroem uma relação bastante genuína entre eles. Se Martín representa a normalidade física, Joaquín encarna o seu desvio. Se o primeiro rompe com a sociedade rural e vai conhecer o que está além dos limites de sua fazenda, o segundo finca raízes em sua terra e seu modo de vida. Os irmãos são antíteses em quase tudo, mas também complementares. Sua cumplicidade e amizade está sublinhada em seus olhares e seus gestos. Mesmo concretizando a ideia de exibir Joaquín como uma criatura burlesca, é importante ressaltar que a direção e o roteiro de Handia não exageram nas tintas para tornar Martín o vilão deste conto de época.

É válido notar ainda que Garaño e Arregi foram bastante espertos ao apresentar as diferenças entre os irmãos como uma metáfora à passagem do tempo histórico, na transição da sociedade rural para o industrialismo urbano. Abaixo da superfície que se permite contemplar, o mundo muda constantemente – é o que diz a narração inicial. Mas no filme dos cineastas bascos, todo esse processo de metamorfose ocorrerá em tom fabular, de modo que o lendário se funde ao histórico e o real ao fantástico. Tudo é construído com muita liberdade, mas também com muito cuidado estético. Handia é maravilhosamente fotografado. Desde os planos abertos de sua introdução, em que dominam os tons esfumaçados e as cores sóbrias e dessaturadas que retratam a vegetação e o clima bascos, sabemos estar diante de uma obra que aposta em sua atmosfera. O diretor de fotografia Javi Agirre sabe que suas texturas são o elemento mais forte na construção do onírico e do fantástico e é bom vê-lo tão à vontade em seu trabalho.

O filme evoca, até certo ponto, o tom de outras obras que retratam a exposição circense de doenças raras, como o clássico de David Lynch – O Homem Elefante. Os diretores fazem o que era esperado: usam as angulações de câmera para acentuar a diferença de dimensão dos personagens (em alguns momentos, vão ao limite do zenital e contra-zenital) e posicionam seus enquadramentos à altura dos homens “normais”, incluindo apenas as pernas e o abdome do gigante basco. Uma das cenas mais interessantes traz os irmãos conversando em um café, enquanto uma multidão se aglomerava ao fundo, perplexa com a altura do mais novo. Mas apesar de todas essas referências imediatas e inevitáveis, em seu miolo, Handia muda muito o tom da história de Joaquín Eleizegui. O resultado é uma abordagem das mais originais.

Indo muito além do tema da desumanização do homem e colocando essa ideia em uma camada menor, o filme inicia então seu belo discurso metafórico sobre o tempo. Se Martín é o mensageiro dos tempos futuros (seu braço paralisado e inútil para o trabalho campesino é uma alegoria clara disso), Joaquín metaforiza a grandiosidade das raízes históricas de seu povo. Handia se desenvolve ciclicamente e retoma, em seu desfecho, a narração sobre um acontecimento com puro sabor de realismo fantástico – Joaquín morre e seus ossos simplesmente desaparecem dentro de sua cova. O filme faz uma ligeira provocação ao espectador, presumindo-o ávido por uma explicação racional ao fato. Mas a ideia de que Joaquín doara os próprios ossos para um médico não convence. É necessário crer na fantasia e tão somente nela. O desaparecimento de todos os vestígios materiais do gigante de Alzo só pode ser entendido como a sucessão mágica entre o antigo e o novo. O passado sendo engolido pelo futuro. Mas o filme dá também uma pista na direção oposta – o braço de Martín volta a mover-se por um instante.

Com uma cinematografia elegante e suave, que compensa alguns problemas de ritmo do filme em seu desenvolvimento, Handia constrói metáforas universais, que nos permitem entender a passagem do tempo de modo muito semelhante à modificação bergsoniana à máxima cartesiana: “Mudamos, logo somos”. Mas se mudar nos conduz inconsolavelmente ao desaparecimento, por outro lado somos feitos muito mais de memória que de tempo presente. Casos como o do gigante basco mostram que é nessas histórias e nessas lendas que apoiamos nossas próprias identidades.

Handia (Espanha, 2017)
Direção: 
Jon Garaño, Aitor Arregi
Roteiro: Jon Garaño, Aitor Arregi, José Mari Goenaga, Andoni de Carlos
Elenco: Eneko Sagardoy, Joseba Usabiaga, Iñigo Aranburu, Ramon Agirre, Aia Kruse
Duração: 114 minutos

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